Trabalho digno é mais do que um assunto jurídico-há que enfrentar mal estar no trabalho!

Perante a guerra na Ucrânia, a subida da inflação, a seca e os incêndios o debate sobre a Agenda do Trabalho Digno tornou-se

secundário na opinião pública e na comunicação social.Algo que merecia uma reflexão adequada à  sua importância vai ser tratado como uma questão menor.No debate sobre o Estado da Nação ocorrida hoje,  dia  20 de julho, quase não se falou do trabalho.António Brandão Guedes é dirigente da BASE-FUT,coordenador de projectos de segurança e saúde dos trabalhadores e Técnico Superior Aposentado da ACT,  ex-sindicalista e cooperativista.Eis a pequena conversa que fizemos com ele sobre estas matérias.

– Que apreciação fazes do debate sobre a agenda do trabalho digno?

Temos verificado que o debate sobre as alterações laborais integradas no pacote da «Agenda do trabalho digno» tem sido fundamentalmente centrado nos aspectos jurídicos.Prevalecem os pareceres técnico-jurídicos, mesmo ao nível sindical e no quadro de um formalismo burocrático que é uma barreira a um debate alargado sobre matérias que têm importante impacto na vida dos trabalhadores.As próprias organizações de trabalhadores têm dificuldade em debater estas matérias sem se centrarem na técnica jurídica.Os próprios trabalhadores viram as costas a estas questões consideradas dos doutores e sindicalistas.O assunto ficou a cargo dos gabinetes técnico-jurídicos, quem os pode pagar, e pouco ou nada dos cidadãos.

Nós na BASE-FUT tínhamos o hábito de fazer estes debates numa perspectiva política, ideológica sem deixar de dar algum relevo ao jurídico.A direita diz que estas questões não são ideológicas procurando esconder os seus interesses na mesma legislação.Ora, estas questões do trabalho são altamente políticas e de cidadania, não se restringem ao mundo sindical e de especialistas.Hoje os trabalhadores abdicam de dar opinião e dobram-se perante as opiniões dos chamados especialistas.É uma forma de dominação, de chamar burros aos trabalhadores, que sabem bem o que os afecta!

Claro que para a direita , em particular a liberal,o problema é essencialmente jurídico, embora fosse melhor não existir qualquer legislação laboral.A lei deve dar a máxima liberdade ás empresas e ao mercado para gerirem o factor trabalho.O trabalhador não passa de um factor de produção.É assim fundamental que o empresário possa estar protegido pela lei para admitir e despedir trabalhadores, para gerir os salários e as carreiras, promovendo a precariedade e a desigualdade entre homens e mulheres, entre trabalhadores submissos e rebeldes, entre jovens e velhos.

Para certa esquerda a lei é igualmente a questão central mesmo que saibamos que o problema é a sua efectivação nos locais de trabalho.Podemos ter uma lei muito benévola, progressista e defensora dos direitos dos trabalhadores ,mas tal não significa automáticamente a existência de trabalho digno, de participação e de bem estar no trabalho.

Claro que hoje temos alguns sectores da esquerda,nomeadamente a BASE-FUT e muitos investigadores sociais que salientam a importância do bem estar dos trabalhadores, da urgente melhoria da prevenção da saúde mental, e muito especialmente da prevenção dos riscos psicossociais.A pandemia veio mostrar a fragilidade das condições de trabalho.

-O governo defende que vai ser uma legislação muito positiva

Embora a legislação em debate tenha aspectos positivos na medida em que pode melhorar a lei nomeadamente o combate ao trabalho clandestino, que deveria ser criminalizado, ao trabalho temporário,à precariedade que afecta em particular os jovens,parece ficar aquém do necessário noutros aspectos como a relação de trabalho com as plataformas digitais, a valorização salarial e o tempo de trabalho,pese os anúncios da redução da semana de trabalho no sector privado.

Os eventuais recuos na relação de trabalho para as plataformas digitais é uma questão paradigmática.Para as multinacionais como a UBER é essencial considerar os trabalhadores como independentes.Tornar os seus trabalhadores verdadeiros trabalhadores significaria, segundo estudos da OIT, uma redução de 30 a 40 por cento dos seus lucros.A precariedade é assim essencial e estrutural ao capitalismo.Por isso é tão importante esta luta da precariedade e de pôr na ordem estas multinacionais que querem escravos!

No caso do trabalho temporário , que na minha opinião nem deveria ter lugar,as limitações propostas podem ajudar a proteção dos trabalhadores, em particular dos mais jovens.

Todavia, neste debate não se procuram as raízes de tão mal estar no trabalho, procuram-se soluções jurídicas que correm o risco de agravar esse mal estar.

Fala-se numa semana de quatro dias como uma medida de propaganda sem ser devidamente trabalhada.Com o mesmo salário? Com redução de horas de trabalho?Tem efeitos económicos positivos,acrescenta stresse no pessoal, acumulação de trabalho?Ajuda na conciliação entre vida profissional e familiar?Vai melhorar a satisfação e bem estar no trabalho na empresa ou serviço concreto?Vão -se ouvir os trabalhadores?

Muitos dos problemas do trabalho não estão no tempo do trabalho, no número de dias que se trabalha, mas sim na intensificação brutal do trabalho, na conexão permanente à empresa e aos clientes, na sobre exploração de quem trabalha.

-Mas esse mal estar de que falas é pouco falado nos debates

Mal estar que está á flor da pele de todos nós.Basta falar com trabalhadores de qualquer sector e veremos os sinais desse mal estar.O bancário que ainda não chegou aos 55 anos e já pensa na pre-reforma;o funcionário público que conta os dias para chegar ao 66 anos e 7 meses e desaparecer do serviço, lamentando as penalizações previstas por reformas antecipadas, o operário têxtil, o mineiro que não chegam com saúde á idade de reforma, arrastam-se penosamente de baixa para o desemprego e finalmente para a reforma.Poucos se questionam sobre esta triste realidade:uma larga percentagem da população trabalhadora não sente satisfação no trabalho, outra parte está doente, de baixa ,ou pratica o presentismo.

Basta ouvir o pessoal da saúde e ver que os problemas do SNS estão estreitamente ligados ao mal estar profundo neste sector.Tantos debates sobre o SNS.Todavia, o cansaço e esgotamento destes profissionais é quase ignorado.Larga percentagem dos médicos e enfermeiros estão em bournout,esgotados pela pandemia e por uma gestão economiscista da saúde.Para não falar do pessoal auxiliar,dos trabalhadores das empresas de higiene e limpeza, dos invisíveis servos da gleba.

 

-Esse mal estar no trabalho afecta a produtividade?

Sim, o debate teria que abordar igualmente a questão da fraca produtividade da nossa economia.Qual a relação entre esse mal estar com a produtividade portuguesa, qual a relação entre produtividade, investimento na prevenção,saúde e doença, e salários.Ou seja, como melhorar a qualidade do trabalho para melhorar a produtividade.Mesmo os sindicatos não debatem muito estas questões.Passa muito mais a ideia do patronato de que há gente que não quer trabalhar, que quer viver do rendimento mínimo.

Debater a produtividade não pode ser tabu.Em geral a direita e os empresários culpam os trabalhadores pela não produtividade.Falam em absentismo sem salientarem as causas do mesmo.Muito do absentismo tem a ver com as condições de trabalho, com a doença, com a nobre utilização dos direitos de maternidade e paternidade;esquecem-se que muitos trabalhadores trabalham doentes;esquecem-se que o factor trabalho é um dos vários a considerar para a produtividade.

O debate sobre a Agenda do trabalho digno deveria começar por estas questões antes de se abordarem as questões jurídicas.

-Mas as proposta do governo vão na linha de ajudar essa produtividade?

As propostas jurídicas do Partido Socialista são apenas gradualistas , ou seja, não são tão flexíveis e liberais como as da direita.Conteêm, no entanto, a mesma abordagem e a mesma substância,trocando por miúdos,são propostas que mostram principalmente uma preocupação com a competitividade da nossa economia, mas  numa estratégia de poupar com o factor trabalho e não onerar as empresas.

Ter competitividade e acumular capital com a intensificação da exploração dos trabalhadores.Numa intensidade menor que a direita, claro, mas com uma estratégia que é a do FMI,Comissão Europeia e OCDE.

Existe uma enorme insensibilidade dos governantes para as condições de trabalho.A maioria dos nossos empresários e políticos consideram o trabalho e as boas condições do mesmo um custo e não um poderoso investimento.Ora, sem trabalho de qualidade, bem pago e com satisfação não há riqueza do povo,há concentração de riqueza nas mãos dos mesmos; há fuga dos melhores para o estrangeiro!

Junta-te à BASE-FUT!