Pedro Estêvão*
Reduzida à sua fórmula mais simples, a política assenta em dois elementos fundamentais: escolher entre alternativas; e garantir a legitimidade da alternativa escolhida.
Ora, numa sociedade complexa, todas as decisões de política acabam por favorecer alguns grupos sociais em detrimento de outros – embora a dimensão e as características destes grupos possam variar, consoante a natureza e a abrangência da decisão.
É assim natural que os grupos prejudicados, sobretudo se estiverem organizados, questionem a legitimidade da decisão e a procurem reverter. Isto significa que todas as decisões de política – ou pelo menos todas as decisões de política tornadas públicas – têm de ser apresentadas como contribuindo para um valor mais alto do que o interesse de um grupo particular. O bem comum, se quisermos. E isto é válido tanto para o regime mais autoritário como para a democracia mais radical.
Vem isto a propósito da resposta do Governo ao aumento da inflação registado no último ano. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), a taxa de variação homóloga do índice de preços no consumidor (IPC) em março último era 5,3%. E só entre fevereiro e março deste ano, o IPC registou uma variação de 2,51%.
Para os trabalhadores o aumento dos preços tem efeito dramático
O impacto para os trabalhadores deste rápido aumento dos preços é evidente: perda de poder de compra dos salários. Num país onde esse poder de compra já é dos mais baixos da União Europeia, o efeito é dramático.
Perante esta evidência, o primeiro-ministro e o ministro das finanças vieram imediatamente a terreno para colocar fora de questão o aumento dos salários. Em particular, recusando-se a utilizar as duas ferramentas mais poderosas de que o Governo dispõe para influenciar, no curto prazo, o valor dos salários na economia portuguesa: o salário mínimo nacional; e os salários da administração pública.
E como garantiram a legitimidade desta decisão, à primeira vista indefensável? Argumentando que o aumento dos salários se traduziria automaticamente num aumento de preços, alimentando uma espiral inflacionária descontrolada – que ninguém quer. É este o apelo ao bem comum.
Este argumento foi rapidamente reproduzido por inúmeros comentadores, ao ponto de se tornar quase um dogma nos debates sobre o tema. Caso encerrado? Não exatamente. É que a forma escolhida pelo Governo para legitimar esta decisão assenta num hábil truque de magia: exagerar a importância dos salários na explicação da inflação para esconder os grupos sociais que beneficiarão com a estagnação dos salários num contexto inflacionário.
É indiscutível que o aumento dos salários pode contribuir para o aumento da inflação. Mas a verdadeira questão é saber em que medida o faz.
É que os salários são apenas uma componente, entre muitas, da determinação do preço dos bens. A maior parcela do preço final de um produto corresponde a custos com matérias-primas e consumos intermédios (incluindo a energia). A restante parcela do preço constitui-se como valor acrescentado. Este corresponde à remuneração do capital (sob a forma de lucro) e – só depois – à remuneração do trabalho (sob a forma de salários).
Daqui decorrem três conclusões importantes:
– O que tem alimentado a inflação não têm sido os salários, mas os custos das matérias-primas e da energia – em parte pelas perturbações reais causadas no comércio internacional pela pandemia de Covid-19 e, mais recentemente, pela guerra na Ucrânia, em parte pelas práticas especulativas dos fornecedores de energia e dos distribuidores de produtos alimentares, usando estes acontecimentos como pretexto.
– Um aumento dos salários não se traduz no aumento equivalente da inflação. Por exemplo, um aumento hipotético de 3,2% nos salários (necessário para simplesmente evitar a quebra de poder de compra desde o início do ano) não se traduziria num aumento de 3,2% nos preços, mas em algo de muito inferior – provavelmente, não mais de alguns centésimos percentuais.
Subida de preços reverterá só para o capital
– Se os salários não forem aumentados, então toda a diferença de valor acrescentado inerente à subida de preços reverterá exclusivamente para o capital, sob a forma de aumento de lucros. E encontramos aqui o grupo beneficiário da decisão do Governo.
O Governo português não dispõe de meios para controlar o aumento da inflação. Não tem, como é óbvio, o poder de terminar com a invasão russa da Ucrânia ou de influir sobre a evolução mundial da pandemia de Covid-19. E a construção do tipo de instrumentos que permitem influir sobre as causas estruturais da inflação – como a diminuição da dependência energética do país, a redução da margem para a especulação e cartelização ou a redução da dependência da economia portuguesa de cadeias longas e vulneráveis – requer políticas de longo prazo.
No entanto, o Governo tem, no curto prazo, o poder de proteger dos efeitos da inflação. E aqui a escolha é puramente política: pode dar prioridade à proteção dos trabalhadores, promovendo aumentos equilibrados e razoáveis dos salários, que permitam (pelo menos) anular os efeitos do aumento de preços. Ou pode proteger exclusivamente o capital, optando pela estagnação dos salários. Infelizmente, parece já claro qual é sua a opção.
*Sindicalista, Coordenador Nacional da BASE-FUT