Sócrates, o agiota e os milionários excêntricos

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Abel Pena*

Recentemente a imprensa internacional fez eco de um grupo de milionários filantropos que teriam doado milhões de

dólares para a investigação e a ciência na luta contra a Covid -19. A notícia correu mundo e os louvores soaram nas alturas. O gesto de apreço não é de somenos importância, nem haverá razões para duvidar das intenções humanitárias destes multimilionários. É hoje um facto que a ascensão do individualismo, destrói o sentido da comunidade tanto social como empresarial. Em Greed Is Dead, 2020, Paul Collier, um dos mais reputados economistas britânicos, prova que a ganância (greed) mata com a excessiva financeirização das empresas e que é inimiga do capitalismo, a destruição do próprio capitalismo; que as empresas são lucrativas porque são sustentáveis e se são sustentáveis dão lucro como se pode comprovar pelo gigantesco investimento para encontrar uma vacina eficaz contra a co

vid-19. Mas isso é outra guerra, guerra que ainda nem sequer começou.

 

Dar o que se tem em excesso é, muitas vezes, um esquema perverso

No entanto, é oportuno dizer que há neste e noutros gestos uma certa ironia camuflada de falsa filantropia, pois dar o que se tem em excesso é muitas vezes um esquema perverso para receber o retorno multiplicado em inúmeros e subtis lucros repletos de luxo e de prosperidade. É um verdadeiro paradoxo social, económico e moral, mas o mundo habitou-se, não à razão humana, mas à do paradoxo financeiro. O assunto não é novo. Historicamente falando, a filantropia e a misantropia, o lucro e a ostentação, do mesmo modo que o luxo, a luxuria e a boa mesa convivem lado a lado, enquanto factores identitários de uma sociedade.

Na Roma antiga, esses mesmos contrários funcionam como elementos culturais simbólicos e sociologicamente identitários, na medida em que grupos sociais e indivíduos de uma determinada classe ascendente vêm no luxo, na mesa, nas diversas práticas excêntricas e extravagantes não só as luzes do glamour social, mas uma forma de estatuto e de diferenciação. É a relação entre norma e desvio

Em sentido oposto a esta reflexão, ocorre-me o tocante episódio da mulher do templo de Jerusalém relatado pelo evangelista Lucas. Uma viúva pobre entrou no templo e deitou no cofre do tesouro duas pequenas moedas, provavelmente destinadas à manutenção do templo, cuja construção fora iniciada por Herodes o Grande por volta dos anos 20 antes de Cristo.

Diante do olhar incrédulo dos ricos e notáveis que controlavam as ofertas, Jesus atirou: «Esta viúva, esta mendiga, deu mais do que todos vós. Vós destes do que vos sobra, ela deu tudo o que tinha para viver» (Lc. 21.1-4). Nada de mais subversivo na história do pensamento normativo, social e religioso semita do que este comentário frio e cortante como fio de navalha transmitido pelos evangelistas Lucas e Marcos. O gesto da viúva pobre indigna os judeus e provoca neles o escândalo, porque em vez de tropeçar no obstáculo da sua pobreza (o grego skandalon – escândalo – significa literalmente tropeçar num obstáculo, numa pedra ou cair numa armadilha) ela contornou-o sabiamente e desviou-se da norma socialmente reguladora. Porque afinal, o que é mais importante? A norma ou o desvio? A regra ou os valores e os princípios?

 

Ricos excêntricos na história greco romana

Na história da humanidade sempre houve excêntricos. Como a palavra indica, excêntrico é sair do centro para a uma certa periferia. Nesta ordem de ideias, nada de menos extravagante e excêntrico do que o pensamento grego, etnocêntrico e centrípeto, que, não obstante, deixou marcas em todo o ocidente. Os gregos não apreciavam as extravagâncias e as excentricidades. Educados nos valores da moderação e da justa medida (‘nada em excesso’, lê-se no aforismo de Delfos), viam nas atitudes excessivas sinais claros do que eles chamavam hybris, insolência face aos homens e aos deuses. Em Roma tudo é diferente. Rómulo criou um movimento centrípeto ao fundar Roma para abrigar proscritos, gente sem nome, marginais, isto é, extravagantes (aqueles que andam errantes) e periféricos, e para todos criou leis. Como em todos os actos fundadores, também em Roma é como se a ordem emergisse da desordem, a justiça da injustiça, o cosmos do caos, a norma do desvio, o centro da periferia. Mas Roma vive bem com as suas contradições, tanto cultiva a riqueza e o luxo, como a cultura e as artes, como a guerra e as armas, como as excentricidades e as extravagâncias dos seus generais, senadores, patrícios e optimates. Tanto na Grécia como em Roma, são conhecidas as excentricidades de uma galeria de homens ricos e ilustres, cuja fama chegou aos nossos dias. Mas nem todos se saíram bem. Vejamos alguns exemplos.

Sócrates, o sábio e o agiota. Conta-se que um milionário ateniense pediu a Sócrates que se encarregasse da educação do filho. Depois de muito insistir, Sócrates aceitou. Quando o filósofo lhe apresentou os seus honorários, o agiota achou-os excessivos e protestou: «Por esse preço posso comprar um bom burro.». Ao que o filósofo respondeu: «Então, fá-lo e terás em casa não um, mas dois burros».

Creso. No reino da Lídia dominou Creso durante várias décadas, obrigando as cidades helénicas ao pagamento de pesados tributos. Creso consultava com frequência os oráculos gregos e enviava-lhes chorudos donativos e presentes de valor incalculável. A fama da sua riqueza difundiu-se de tal maneira por todo o Mediterrâneo que ainda hoje se diz que um homem abastado é «tão rico como Creso».

Creso, Ciro, Sólon. Quando Creso foi capturado pelos soldados do rei persa Ciro, O Grande, este condenou-o à fogueira. Enquanto esperava pela hora da execução, Creso lamentava-se e invocava Sólon. Ciro, que o ouvia, perguntou-lhe por que razão invocava tão insistentemente o nome de Sólon. Creso respondeu que finalmente compreendia os conselhos que o sábio ateniense lhe tinha dado. Muitos anos antes, quando Creso vivia na melhor fase da sua vida, Sólon tinha-o avisado de que a verdadeira riqueza estava na felicidade. Ciro, comovido, concedeu-lhe o perdão.

O rei Midas. O rei da Frígia, Midas, governou até 695 a.C. e conseguiu que o seu país vivesse uma época de grande prosperidade, época que os frígios aproveitaram para se helenizarem. Segundo a lenda, os deuses concederam-lhe o poder de converter em ouro tudo em que tocasse. Midas acabou por se arrepender, ao ver que a comida, a água e a própria filha, que abraçara sem pensar nos efeitos, se transformaram em ouro.

Uma ponte dourada. Festas e concursos trágicos forneciam na Grécia ocasião para liberalidades espetaculares. Conta-se que o magnata Nícias ficou célebre pelo fausto com que organizou uma embaixada ateniense a Delos para celebrações festivas. Dizem que  até transportava uma ponte pré-fabricada com dourados, tapetes e coroas.

Erro crasso. Marco Licínio Crasso foi o homem mais rico de Roma, famoso pela sua fortuna, diatribes e excentricidades. Plutarco, o seu principal biógrafo, retrata sem piedade, a paixão pela riqueza (philoplausia) deste jovem oficial saído da plebe, a sua obsessão pelo luxo, pelo poder, pela absoluta ausência de escrúpulos e por todo o tipo de excentricidades militares. O seu porte de playboy, a sua ganância sem limites, os seus golpes financeiros concitavam o desprezo e o ódio dos patrícios senadores, mas não lhe faltavam amigos influentes que o introduzissem nos poderosos círculos políticos, sociais e militares de Roma. Assim, construía casas que depois os seus correligionários incendiavam, para depois receber o seguro.

 

O erro de Crasso e a guerra contra Espártaco

Mas a sua paixão eram as armas. Ávido de fama e vitórias militares, Crasso cria um exército de legionários e mercenários que ele próprio financiava para enfrentar Espártaco, o célebre gladiador trácio que se rebelou contra Roma na insolentemente chamada guerra dos escravos (73-71 a.C.). Na verdade tratou-se da revolta dos gladiadores de Cápua, todos antigos guerreiros ou soldados romanos, caídos em desgraça. Comandados por Espártaco, a este grupo de gladiadores depressa se lhe juntou uma multidão de homens e mulheres ávidos de liberdade. Em menos de dois anos, o exército de Espártaco ascende a mais de 100.000 homens. Ninguém até então tinha vencido o exército do gladiador trácio. Um verdadeiro pesadelo para Roma.

Sedento de guerra e de uma vitória coroada de glória, Crasso cerca o invicto exército comandado por Espártaco perto de Modena, mas numa manobra desesperada Espártaco rompe o bloqueio e um terço dos seus homens consegue atravessar as linhas de Crasso. Lá se vai a glória de uma vitória retumbante e reputação de grande militar. Finalmente, com a ajuda de Pompeio, o exército de Crasso enfrenta Espártaco na Lucânia do norte em 71 a.C. Espártaco morre na batalha, mas o seu corpo nunca foi encontrado. Os historiadores romanos atribuem ao trácio uma morte gloriosa, mas os que não pereceram com ele tiveram uma morte horrorosa. Crasso mandou crucificar 6 000 sobreviventes ao longo dos 200 quilómetros da Via Ápia que vai de Cápua a Roma. De regresso a Roma, Crasso foi reconhecido pelo seu mérito militar, mas Pompeio foi quem lhe arrebatou o triunfo. Contudo, o erro de Crasso não ficou por aqui. A morte de Espártaco parecia ensombrar definitivamente a vida do milionário. Com efeito, vinte anos depois, Crasso investe toda a sua fortuna num exército de elite para derrotar os Partos e apoderar-se do mítico tesouro do reino dos Partos. Mas a expedição de Crasso foi um desastre que teve por palco as areias do deserto e um cenário de tragédia. As suas sete legiões (cerca de 35 000 homens) foram dizimadas pelos Partos na histórica batalha de Carras, (actual Harã, na Turquia) a 9 de Junho de 53 a.C. Entretanto, Orodes e Artavasdes, príncipes helenizados reunidos na Arménia para um banquete de núpcias, assistem a um interlúdio trágico extraído das Bacantes de Eurípides. Jasão, o actor grego, representa Agave que brande a cabeça cortada de seu filho Penteu. Nesse preciso momento, chega um soldado parto trazendo a cabeça de Crasso. Jasão apodera-se do terrível troféu que substitui pela máscara de Penteu, enquanto o soldado parto que matou Crasso tenta arrancá-la das suas mãos. A cena é cruel, alucinante, bárbara. Como Espártaco, o trácio, a última expedição de M.L. Crasso em terra bárbara teve um desfecho trágico. Foi um erro de cálculo menosprezar os conselhos do senado, a ajuda dos aliados romanos da Arménia e a força imbatível dos Partos. Por isso, o nome do excêntrico milionário romano ficou conhecido para história como ‘erro crasso’, expressão que se tornou proverbial até aos dias de hoje.

 

*Professor Aposentado da Faculdade de Letras de Lisboa,dirigente associativo.

 

 

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