Pedro Estevão*
A experiência de confinamento sanitário que vivemos na sequência da pandemia de CoVID-19 trouxe o trabalho remoto para o centro da discussão pública. E não sem razão. Os meses de fevereiro a maio de 2020 assistiram a uma transição súbita e sem precedentes de uma parte considerável dos trabalhadores em Portugal para o regime de teletrabalho. Um estudo de uma equipa CoLABOR – Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social estima em 28% a proporção de trabalhadores que se encontrava em teletrabalho em maio de 2020 [1], um valor que é tanto mais impressionante quanto o teletrabalho era uma realidade praticamente residual em Portugal antes da crise sanitário.
Ou seja, para uma parte muito significativa dos trabalhadores e das instituições empregadoras – empresas, administração pública e instituições do terceiro setor – o trabalho remoto já não é visto como algo de exótico ou futurista, mas uma realidade que já experimentaram e cujos benefícios e problemas puderam já testemunhar em primeira mão.
É necessário um olhar crítico sobre o trabalho remoto
É necessário que as organizações de trabalhadores mantenham um olhar crítico sobre o trabalho remoto e tenham bem presente para os seus numerosos riscos, entre os quais se contam:
- A degradação da saúde física e mental do trabalhador gerada pelo isolamento e pela falta de condições apropriadas para o trabalho em grande parte das habitações dos trabalhadores (e.g. espaço disponível, iluminação, ergonomia do material de trabalho, isolamento sonoro, etc.);
- A diluição das fronteiras entre os espaços e tempos da vida privada, familiar e cívica e os espaços e tempos do trabalho, com exigências de disponibilidade permanente dos trabalhadores por parte dos empregadores;
- A transferência de custos operacionais da instituição empregadora para o trabalhador; (e.g. eletricidade, água, aquecimento, comunicações, manutenção dos espaços)
A dispersão dos trabalhadores, que reduz a eficácia das formas tradicionais de ação sindical e a capacidade de fiscalizadora das instituições públicas e aumentando a margem para o desrespeito dos direitos dos trabalhadores por parte das entidades empregadoras.
Que estratégia para os sindicatos?
Em suma, o movimento sindical pode e deve alertar para estes e outros riscos. Mas tem, ao mesmo tempo, de estar consciente de que existirá muito breve uma pressão forte para o crescimento recurso ao trabalho remoto em Portugal. Nesse contexto, a questão que se coloca é de qual a estratégia que os sindicatos devem adotar para enfrentar essa pressão.
Creio que seria um erro concentrar energias na rejeição tout court do trabalho remoto. O problema de uma estratégia deste tipo é que enfrenta um contexto e uma correlação de forças que lhe é altamente desfavorável. Com efeito, o movimento sindical não teria apenas de enfrentar o habitual e expectável entusiasmo das administrações de empresas com as perspetivas de redução de custos operacionais e de colocação de barreiras à ação sindical tradicional. Teria também de enfrentar um Governo que já deu muitas provas de adesão acrítica a uma perspetiva tecno-otimista sobre a economia e o trabalho. Veja-se, por exemplo, como o Programa de Estabilização Económica e Social prevê que até 25% dos trabalhadores da administração pública “estejam em regime de teletrabalho” .[1]
Mas, acima de tudo, o movimento sindical teria também de enfrentar a incompreensão de uma grande parte dos trabalhadores. Uma estratégia sindical realista tem de reconhecer que o trabalho remoto é atrativo para muitos trabalhadores – em especial os mais qualificados – e que essa atração não resulta apenas de intoxicação ideológica, mas está ancorada em motivo reais. Com efeito, o trabalho remoto:
- Permite reduzir os tempos e custos da deslocação entre casa e o local de trabalho;
- Permite ao trabalhador evitar a vivência quotidiana de locais de trabalho que lhe são agressivos e desagradáveis;
- Pode, se for usado de forma moderada, facilitar alguns aspetos da conciliação entre a vida familiar e cívica e a vida profissional.
- E, em contextos de emergência como o da atual crise pandémica, constitui um meio importante para reduzir a exposição dos trabalhadores ao contágio
Em suma, uma estratégia de rejeição liminar do trabalho remoto enfrentaria uma coligação poderosa entre entidades empregadoras e o Governo e alhearia uma parte significativa dos trabalhadores. Seria fácil para esta coligação fazer passar a posição do movimento sindical como um entrave ao progresso tecnológico e contrária à vontade e aos interesses dos trabalhadores. Face a isto, as probabilidades de sucesso são mínimas.
Regime presencial continua a ser a norma nas relações laborais
A estratégia alternativa passa por aceitar um incremento moderado nas situações de teletrabalho, exigindo em troca uma forte regulação do teletrabalho através da lei e da negociação coletiva. Tal estratégia deve concentrar-se em três objetivos fundamentais:
- Garantir que o trabalho remoto não se torna a norma das relações laborais;
- Garantir que se desenham e implementam de forma generalizada políticas e práticas de saúde e segurança no trabalho adaptadas à realidade específica do trabalho remoto;
- Garantir que são criadas formas obrigatórias de compensação monetária aos trabalhadores pelos custos operacionais transferidos pela empresa.
Estes objetivos podem ser concretizados através de um conjunto de provisões:
- Assegurar na legislação laboral que o regime presencial continua a ser norma nas relações laborais, com o trabalho à distância a poder ser apenas complementar. Na prática, isto significa que o trabalhador não deve poder estar em regime de teletrabalho senão numa fração minoritária do seu tempo de trabalho;
- Assegurar na legislação laboral que a adesão dos trabalhadores ao regime de teletrabalho é voluntária e só se pode efetuar em moldes definidos em negociação coletiva;
- Introduzir provisões eficazes de proteção da privacidade do trabalhador, de direito à desconexão e de garantia de cumprimento dos horários de trabalho;
- Tornar o teletrabalho dependente da cedência, por parte dos empregadores, de todos os equipamentos necessários à realização das tarefas e à garantia da sua segurança e saúde dos trabalhadores em trabalho remoto;
- Tornar o teletrabalho dependente de formação na área das tecnológicas da informação e da comunicação;
- Criar um subsídio de compensação obrigatória, de montante proporcional ao período em que o trabalhador se encontra em regime de teletrabalho.
Esta estratégia que alie a divulgação dos riscos do teletrabalho à apresentação de soluções concretas para a sua regulação tem muito mais condições para ser bem-sucedida, obrigando o Governo a tê-las em conta e isolando os empregadores que vêm no teletrabalho como maus uma forma de transferir custos para os trabalhadores.
Claro que, mesmo que bem-sucedida, que esta estratégia não resolve todos os desafios que o trabalho remoto coloca ao movimento sindical. Continua a ser necessário desenvolver e divulgar novas formas de ação sindical adaptadas à realidade do trabalho remoto. Aliás, seria interessante a este respeito realizar um levantamento exaustivo das formas como muitos sindicatos portugueses conseguiram realizar o seu trabalho junto dos trabalhadores durante o confinamento. Refletir sobre as suas dificuldades, mas também identificar e disseminar as soluções que alguns deles desenvolveram para responder ao problema sério da dispersão dos trabalhadores.
*Coordenador Nacional da BASE-Frente Unitária de Trabalhadores
Membro do Conselho Nacional da CGTP
(1) Adão e Silva, Pedro et. al. (2020) Trabalho e desigualdades no Grande Confinamento: Desemprego, layoff e adaptação ao teletrabalho. CoLABOR. https://colabor.pt/wp-content/uploads/2020/06/Trabalho-e-Desigualdades-no-Grande-Confinamento-II.pdfP
(2)Governo de Portugal (junho de 2020). Programa de Estabilização Económica e Social, p.39. https://pees.gov.pt/wp-content/uploads/2020/06/PEES-Programa-de-Estabilizacao-Economica-e-Social.pdf