António Brandão Moniz*
A 3 de abril foram aprovadas alterações ao Código de Trabalho através da publicação da Lei n.º 13/2023 de 3 de abril que “altera o Código do Trabalho e legislação conexa, no âmbito da agenda do trabalho digno”.
Quais foram as alterações que integram o elemento de digitalização do trabalho, e como estão agora expressas no código?
- O artº 3º do Código de Trabalho refere “As normas legais reguladoras de contrato de trabalho só podem ser afastadas por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho que, sem oposição daquelas normas, disponha em sentido mais favorável aos trabalhadores quando respeitem às seguintes matérias” (nº3), e refere várias matérias (Direitos de personalidade, igualdade e não discriminação, Dever de informação do empregador, Direitos dos representantes eleitos dos trabalhadores, etc.). Mas agora estabelece uma outra: “Uso de algoritmos, inteligência artificial e matérias conexas, nomeadamente no âmbito do trabalho nas plataformas digitais” (alínea o).
- O artº 24º refere-se ao “Direito à igualdade no acesso a emprego e no trabalho”. O nº 3 mencionava que “O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação” de disposições legais relativas ao exercício de uma atividade profissional por estrangeiro ou apátrida (a), ou de disposições relativas à conciliação da atividade profissional com a vida familiar (b). Com esta alteração. este nº 3º refere agora “O disposto nos números anteriores também se aplica no caso de tomada de decisões baseadas em algoritmos ou outros sistemas de inteligência artificial e não prejudica a aplicação de…”, e as duas áreas de aplicação (a e b) mantêm-se.
- O Artigo 424.º diz respeito ao “Conteúdo do direito a informação”. Aí se estipula que as comissões de trabalhadores têm direito a informação sobre vários temas (Planos gerais de atividade e orçamento, Organização da produção e suas implicações no grau da utilização dos trabalhadores e do equipamento, Situação contabilística, compreendendo o balanço, conta de resultados e balancetes, etc.). Mas agora introduz uma alínea j) onde se diz “Parâmetros, critérios, regras e instruções em que se baseiam os algoritmos ou outros sistemas de inteligência artificial que afetam a tomada de decisões sobre o acesso e a manutenção do emprego, assim como condições de trabalho, incluindo a elaboração de perfis e o controlo da atividade profissional”.
- No Artigo 466.º acerca da “Informação e consulta de delegado sindical”, diz-se que “O delegado sindical tem direito a informação e consulta sobre as seguintes matérias, além de outras referidas na lei ou em convenção coletiva”, e é introduzida uma nova matéria: “Parâmetros, os critérios, as regras e as instruções em que se baseiam os algoritmos ou outros sistemas de inteligência artificial que afetam a tomada de decisões sobre o acesso e a manutenção do emprego, assim como condições de trabalho, incluindo a elaboração de perfis e o controlo da atividade profissional” (alínea d), ou seja, o mesmo conteúdo que a alteração ao artº 424º.
Alterações no Código do Trabalho têm efeitos na ação sindical
Certamente, não foram introduzidas muitas alterações a respeito das aplicações de inteligência artificial. Todavia, as alterações que são aplicadas agora são muito importantes e têm efeitos na ação das organizações representativas dos trabalhadores.
Vejamos cada uma delas. A primeira, diz respeito às normas legais reguladoras de contrato de trabalho. Embora a nova alínea o) do artº 3º mencione o exemplo das plataformas digitais, será importante saber que o uso de algoritmos, inteligência artificial e matérias conexas não pode – dizendo de uma maneira simples – permitir o despedimento. Se isso poderia ser usado no caso das plataformas digitais onde um contrato de trabalho tenha sido estabelecido, agora o Código de Trabalho não o permite. Mas, eventualmente, podemos considerar todos os outros setores. Assim, por exemplo, quando uma empresa ou organização recorra a serviços próprios ou de consultoras de gestão de pessoal que usem “algoritmos, inteligência artificial e matérias conexas” para alterar as “normas legais reguladoras de contrato de trabalho”, os trabalhadores poderão estar protegidos pelo Código de Trabalho.
A segunda, relativa ao artº 24º, diz respeito ao direito à igualdade no acesso a emprego e no trabalho. Também aqui passa a existir uma proteção quando se prove que a tomada de decisões baseadas em algoritmos ou outros sistemas de inteligência artificial prejudica as disposições legais relativas ao exercício de uma atividade profissional por estrangeiro ou apátrida, ou de disposições relativas à conciliação da atividade profissional com a vida familiar.
De um modo geral, podemos dizer que passa a existir uma prevenção contra a tomada de decisão de gestão de recursos humanos baseada em algoritmos ou outros sistemas de inteligência artificial.
Os outros dois casos estão relacionados com as organizações representativas dos trabalhadores. No primeiro (artº 424º), as comissões de trabalhadores passam a ter direito a informação sobre os “parâmetros, critérios, regras e instruções em que se baseiam os algoritmos ou outros sistemas de inteligência artificial que afetam a tomada de decisões sobre o acesso e a manutenção do emprego, assim como condições de trabalho, incluindo a elaboração de perfis e o controlo da atividade profissional”. Esta estipulação parece-me muito interessante pois restringe claramente a possibilidade de aplicação de “parâmetros, critérios, regras e instruções” sobre o “acesso e a manutenção do emprego, assim como condições de trabalho, incluindo a elaboração de perfis e o controlo da atividade profissional” que se baseiem em procedimentos automatizados e programáveis.
É importante que as organizações de trabalhadores promovam o debate sobre a inteligência artificial
No entanto, esta restrição apenas pode acontecer quando as comissões de trabalhadores forem capazes de reconhecer esses procedimentos, ou a possibilidade de eles virem a ser utilizados. Isso vai implicar que estas venham a discutir internamente estes temas. Por exemplo, existe já alguma atenção para a relação entre digitalização do trabalho e emprego, mas a concretização dessa relação nem sempre é evidente.
No segundo caso (artº 466º), são os sindicatos que terão de internalizar esse debate. Para muitos sindicatos (federações, uniões ou confederações também) este tema não é muito importante, ou não é considerado prioritário. A posição de muitos é apenas genérica, e frequentemente, contra o recurso da inteligência artificial nos processos de trabalho, argumentando que isso pode gerar desemprego, mas os trabalhadores sabem que a negação desse recurso não é viável no curto prazo. Algoritmos e inteligência artificial fazem, cada vez mais, parte do moderno universo laboral. E, nem sempre estas “matérias conexas” são intrinsecamente malignas ou geram desemprego e miséria. E se assim é, há que saber como controlar estes sistemas automatizados, e torná-los num benefício para os trabalhadores melhorando as suas condições de trabalho. Sobretudo, agora que a legislação os protege de algum modo.
Mas, finalmente, estes “pormenores” das alterações legislativas criadas no âmbito da agenda do trabalho digno deverão permitir que o debate em torno da inteligência artificial envolva em particular as organizações representativas dos trabalhadores. Se elas o não promoverem, esta legislação não servirá para nada, pois os trabalhadores serão sempre os mais prejudicados.
- Professor Universitário e Investigador na área da Inteligência Artificial