Abel Pena*
Acedendo ao convite do meu amigo A. Brandão Guedes para colaborar na publicação digital que ele e outros tão denodadamente alimentam, pensei escrever um texto sob o signo de Jano (Ianus), o deus de dois rostos do calendário Romano que dá o nome ao mês homónimo de Janeiro (ianuarius). Perdoar-me-á a ousadia este caro amigo que tem o raro privilégio de festejar duas vezes o seu aniversário no mês de Jano e dos Reis Magos. Mas não podendo o signatário recusar tão honroso compromisso, optei por recuar ainda mais no tempo e escrever ‘qualquer coisa de útil’ sobre uma área que há muito me apaixona, a Antiguidade Clássica grega e latina que tanto marcou a cultura Ocidental. Se bem que a questão do útil e do inútil é tão antiga como o comer e o beber, deixando para outras calendas a história de Jano e toda a magia dos Reis Magos, decidi dedicar esta primeira crónica a uma princesa não menos encantadora, cujo nome é Europa.
A Europa é antes de mais um mito
Motivo literário ou iconográfico, entidade geográfica, política ou económica, Europa é, antes de mais, um mito. Filha de Telefassa e de Agenor, rei de Tiro (Líbano), o nome da princesa fenícia ocupa um lugar cimeiro entre os motivos e as figuras mitológicas fundadoras da civilização ocidental. O mito começa com a chegada de Zeus à Fenícia disfarçado-se de touro. Este disfarce astucioso permite-lhe seduzir e raptar a jovem princesa, e esta, atraída pela beleza do animal, monta no touro e ruma para Creta. As fontes mais antigas não são literárias, são mitológicas e iconográficas. Vasos, mosaicos, métopas, moedas cretenses, frescos, nomeadamente os de Pompeios, representam por toda a parte Europa. Nas mais primitivas representações iconográficas, Europa surge como aquela que conduz com mão firme o touro, como se este fosse um barco a navegar em direcção à ilha de Creta e ela o piloto atento às correntes marítimas, aos ventos e aos perigos do mar. Ora a ideia de piloto (kybernetes), mais tarde alegoria de regimes políticos, governação e poder, está fortemente enraizada no mundo grego desde os primórdios da civilização. É como se Europa (a princesa do mito) e o continente europeu (mitónimo de Europa) fossem responsáveis pela condução dos seus destinos e os do mundo conhecido, ideia que não se afasta muito dos tempos actuais.
Quando se fala de Europa falamos de várias «europas»
Quando se fala de Europa, não se trata apenas de uma figura chamada ‘Europa’, mas de várias ‘europas’. De facto, o nome da princesa fenícia designa nas fontes antigas várias figuras femininas repartidas entre figuras humanas e divinas. Por outro lado, o destino de Europa está ligado a dois factores a que se tem dado pouca atenção: o rapto de mulheres famosas que são mães de heróis igualmente célebres e poderosos e o tema do amor e da sedução. O tema da violência (rapto) e do amor constituem assim o núcleo central do mito. Rapto e amor são os dois principais motivos das representações artísticas antigas e modernas de Europa que de Zeus teve três filhos famosos: Radamanto, Sarpédon e Minos que governou Creta. Mas outro factor intervém no mito de Europa: o facto de ela ter dado origem ao ciclo heróico de natureza familiar, do qual o irmão, Cadmo, é o mais conhecido. Com efeito, depois do rapto, Agenor envia os filhos à procura de Europa. A Cadmo coube o périplo da Grécia e ali, cansado da busca infrutífera, funda a cidade de Tebas, onde introduziu as primeiras letras do alfabeto, as ‘letras cadmianas’: alfa, beta, gama, delta. Cadmo, irmão de Europa, torna-se assim um herói fundador e civilizador. Mas o destino das grandes heroínas seduzidas por Zeus é desaparecerem, uma vez cumprida a sua função reprodutora. Outro factor não menos relevante condiciona o papel destas heroínas: estes mitos, enquadrados num cenário de paixão, rapto e ´tragédia’, ilustram bem o papel que a sociedade grega atribuía às mulheres.
A incerteza quanto à etimologia de Europa
A incerteza quanto à etimologia de Europa deixa os filólogos nervosos. Segundo uns, o nome de Europa (do grego europé ou europía) derivaria de uma raiz semita, ereb-, que designa o poente, o pôr-do-sol. O termo parece, pois, remeter para um território situado a Ocidente. Segundo outros, Europa derivaria de eurus+opé, isto é, algo ou alguém que tem visão alargada, profunda, capaz de olhar mais além do horizonte. Deste modo, o nome próprio de Europa remeteria para a princesa ‘de olhar profundo, que vê ao longe’. É como quando utilizamos a expressão ‘mar alto’, e queremos dizer ‘profundo, infinito’.
Deixemos de lado a questão das fontes literárias e fixemo-nos apenas nisto. Heródoto, o pai da história, ignora a origem e o sentido de uma terra tripartida em Europa, Ásia e África (Líbia). E compreende-se porquê. Ao falar das guerras entre gregos e persas, Heródoto só conhece uma terra bipartida: Ocidente e Oriente, os Gregos (nós) e os Outros (Persas), os bárbaros, isto é, não Gregos. Por outo lado, Heródoto contesta que haja uma relação directa entre o nome de Europa e a entidade que representa, e estranha que se tenha atribuído o nome de uma mulher originária de uma outra parte do mundo a Europa, querendo com isso dizer que a Ásia é anterior à Europa, o que era pouco aceitável na tradição grega. Isso vê-se pelo seu contemporâneo, Ésquilo, que, na tragédia Os Persas, refere que, por vontade dos deuses, a Europa pertence aos Gregos e a Pérsia aos bárbaros. Esta desconfiança dos gregos face ao mundo bárbaro e o medo do outro ou de tudo o que é estranho é inversamente proporcional à atração pelo desconhecido epicamente representado pelo herói da Odisseia, Ulisses. As viagens de Ulisses já tinham aberto novos mundos, novos povos e novos conhecimentos, mas Ésquilo cria um forte sentimento etnocêntrico e aumenta o apego a pátria centrado na polis. Estes sentimentos aparecem frequentemente nas representações iconográficas onde se observa a imagem de uma Europa virada para trás, a olhar para a praia fenícia onde ela deixou o seu oikos, a sua casa, família e companheiras de infância.
Os romanos fizeram mais do que os gregos para perpetuar o mito de Europa
O antagonismo grego de uma Europa Ocidental associada à Ásia acentua-se nos primórdios do império Romano. Porém, quando a Ásia passa a incorporar o rol das Províncias Romanas, a teoria e a prática política dos imperadores muda. Mas também é verdade que no espaço de poucos anos os romanos fizeram mais por perpetuar o mito de Europa do que os gregos (especialmente atenienses) que durante séculos hostilizaram e reduziram o mito cretense a parente pobre ou a mero apêndice da mitologia grega. Esta hostilidade manifesta a rivalidade entre dois sistemas políticos incompatíveis para os gregos, a tirania imperial de Minos e a democracia ateniense. Mas também explica a pouca repercussão que os mitos cretenses, nomeadamente o mito de Europa, tiveram na dramaturgia grega.
Para terminar, o interesse por Creta desperta no século XIX, quando o inglês Arthur Evans mostra ao mundo o esplendor do império de Minos: a civilização dos palácios, dos afrescos, da mulher de estilo ‘parisiense’, da escrita e dos grandes mitos cretenses. Sem falar do Renascimento, muitos artistas e poetas modernos, fascinados pela beleza, crueldade, violência e erotismo do mito, fizeram de Europa um sexual symbol ou criaram peças a partir de temas comuns aos outros mitos gregos: The Beauty and the Beast: Félix Vallotton, The Abducation of Europa, 1907; Lovis Corinth, Loves of Zeus, 1920; Gerda Wegener, Abducation of Europa, 1920, entre muitos outos.
De Europa ao euro….
Mas o mito de Europa não se fica pela literatura, pela poesia ou pela geografia. Também a política usou o tema do disfarce e da astúcia de Zeus para fins partidários, políticos e económicos. Basta dizer que Europa, a inocente princesa fenícia, deu nome a uma das mais poderosas moedas da economia do mundo moderno: o euro. Mas isso é outra história…
*Professor Aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa