Pedro Estevão*
A democracia portuguesa é, em muitos aspetos, uma construção admirável. Não se limitou ao restabelecimento de direitos e liberdades políticas e cívicas, fundamentais para uma democracia política. Incluiu também o desenho e a reforma de verdadeiros alicerces institucionais de uma democracia social, como a criação de um serviço nacional de saúde, a unificação e alargamento da cobertura da segurança social e a consagração do primado da escola pública na educação.
Devemos orgulharmo-nos dos avanços proporcionados pela nossa democracia. Mas, ao mesmo tempo, não devemos ser complacentes para com as suas falhas. Porque a democracia portuguesa continua a ser um projeto inacabado e, em alguns casos, até em retrocesso.
Veja-se a nossa democracia política. Por um lado, assistimos a um estreitamento da representação política, com classes e grupos estruturalmente subordinados na nossa sociedade (por exemplo, operários industriais, mulheres ou afro-descendentes) a estarem subrepresentados ou até ausentes das nossas instituições políticas. Por outro lado, a produção e o acesso a informação rigorosa e independente é cada vez mais difícil, devido à concentração da propriedade dos meios de comunicação social e a degradação das condições de trabalho dos jornalistas. E a debilidade do nosso tecido associativo torna cada vez mais escassos os espaços de desenvolvimento de espírito crítico e de convivência com outros diferentes de nós.
Também a nossa democracia social apresenta fortes lacunas. O reconhecimento da dignidade do trabalho é uma miragem, com cerca de um quarto dos trabalhadores em Portugal a auferirem do salário mínimo, 10% dos trabalhadores a viverem abaixo da linha pobreza. Também a igualdade é uma aspiração por realizar, com a origem de classe ou a cor da pele de uma pessoa a manterem-se preponderantes no seu percurso escolar e profissional e na qualidade da sua interação com os serviços do estado. E subsistem falhas gritantes no plano do acesso a bens e serviços essenciais, como é o caso da habitação, dos cuidados na 1ª infância ou dos cuidados aos idosos.
Também a nossa democracia económica está atrofiada. No plano das relações laborais, é totalmente ignorado o princípio de que os trabalhadores são portadores de interesses legítimos e divergentes das administrações. As relações autoritárias de trabalho são regra, os mecanismos de negociação coletiva estão enfraquecidos e o trabalho dos sindicatos é desvalorizado. A democracia portuguesa também nunca superou a sua desconfiança face a formas alternativas de organização da produção, distribuição e consumo como as cooperativas. Em vez disso, facilita a concentração de poder económico em setores estratégicos, eternizando assim um modelo económico assente na compressão dos salários e das margens dos pequenos produtores.
Estas falhas estão na origem de muitas das dificuldades que as pessoas sentem no seu dia-a-dia. Ignorar o que as pessoas dizem e sentem é deixar campo aberto para que forças anti-democráticas distorçam as suas queixas para alimentarem uma agenda autoritária e xenófoba. Ora, o combate a estas forças não se faz negando os problemas. Faz-se estudando, criticando, ouvindo, mobilizando e propondo soluções que vão à raiz dos problemas. Faz-se, em suma, aprofundando a democracia.
Coordenador Nacional da BASE-FUT e sindicalista.
Nota:Este artigo foi inicialmente publicado no Voz do Trabalho, jornal da LOC/MTC.