Criadas rebeldes

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A série brasileira de desenhos animados “Irmão do Jorel” é uma sátira da vida familiar que lembra “Os Simpsons”. Todavia, há um personagem que não tem paralelo na série norte-americana: a criada da família, representada por um polvo púrpura – amorfa, sem voz, sem nome, com oito braços prontos para realizar qualquer tarefa que lhe peçam (para um episódio típico, ver https://www.youtube.com/watch?v=lJifoMkAOBU ). A indústria de entretenimento brasileira é recorrente neste tipo de representação. De atrizes brancas mascaradas de negras em comédias televisivas a criadas que formam uma banda na telenovela “Cheias de Charme”, as representações das trabalhadoras domésticas são ubíquas na imaginação cultural do país.

No Brasil existem 6 milhões de empregadas domésticas

Para além da indústria cultural, o trabalho doméstico pago é uma realidade para cerca de 6 milhões de mulheres brasileiras, bem como para os milhões de famílias que as empregam. É uma profissão fortemente marcada pela divisão sexual e racial do trabalho: 92% dos empregados nesta categoria são mulheres e dois terços delas são negras. Limitadas à esfera privada, a experiência real deste trabalho tem sido atomizada e quase invisível.

Apesar do silencio dominante na esfera pública brasileira sobre as realidades do trabalho doméstico, as trabalhadoras domésticas desempenharam um papel de destaque na Marcha das Mulheres Negras, que reuniu 100 000 pessoas contra o racismo e a violência em novembro de 2015. Em 2016, a rapper e antiga criada Preta-Rara partilhou no Facebook algumas das suas memórias do seu tempo enquanto empregada doméstica e foi inundada com respostas de outras trabalhadoras domésticas. A página que criou reuniu em pouco tempo milhares de histórias pessoais, de múltiplos pontos de vista – dando voz às experiências das trabalhadoras domésticas brasileiras de uma forma que as frias estatísticas oficiais nunca conseguiriam.

Nunca foi ensinada a ler e escrever

Em 2019, Preta-Rara – de nome real Joyce Fernandes – compilou estes relatos num livro, intitulado “Eu, Empregada Doméstica”, com o subtítulo “A Sanzala Moderna é o Quartinho da Empregada”. Começa com a história da sua avó, Noêmia, que começou a trabalhar como criada com 14 anos de idade. A mão de Preta-Rara, Maria Helena, seguiu o mesmo caminho e conta à filha o trauma de nunca ter sido ensinada a ler e a escrever (Preta-Rara acabou por tirar um curso universitário e ensina história no ensino secundário, para além da sua música; o seu primeiro álbum, “Audácia”, surgiu em 2015, estabelecendo uma forte presença nas redes sociais.”

Ainda que algumas das histórias recolhidas em “Eu, Empregada Doméstica” mencionem patrões decentes, a situação estrutural do trabalho doméstico significa que a exploração é a norma. Muitas descrevem humilhações psicológicas: acusações de roubo, assédio sexual, assédio moral, limites à liberdade de movimentos, doenças profissionais e exaustão crónica. As mulheres recordam-se de serem enviadas no início da adolescência para trabalhar em casas de estranhos. Crianças pequenas, que acompanham a sua mãe por esta não ter onde as deixar, são maltratadas pelos patrões ou sofrem bullying dos seus filhos. As trabalhadoras domésticas fazem muitas vezes grandes sacrifícios para apoiar os seus filhos – em especial as suas filhas – para que não passem pela mesma experiência. A educação é frequentemente vista como a chave da mudança – provocando por vezes o riso e a incredulidade dos seus patrões. Escapar à exploração e à subordinação requer recursos e um esforço individual enorme.

Proibidas de usar o elevador «social»

A própria Preta-Rara recorda a indignidade de ser obrigada a usar o elevador de serviço num prédio e de ter subir oito lanços de escadas quando ele estava avariado, porque não é permitido às criadas usar o elevador “social”. Uma resposta similar surge quando as trabalhadoras domésticas são levadas até ao limite: “Nunca mais ponho os pés naquele lugar!”. É uma frase que ocorre vezes sem conta nos contributos reunidos por Preta-Rara, uma série de “greves individuais” destas mulheres contra uma situação insuportável.

[A filosofa feminista] Nancy Fraser analisou o agravamento das contradições entre ‘capital e cuidado’ no capitalismo financeirizado atual, à medida que as pressões neoliberais intensificam a pressão sobre formas essenciais de trabalho reprodutivo afetivo e material – dar à luz e cuidar de crianças, cuidar da casa ou manter relações pessoais e na comunidade. Esta autora defende que cada forma de sociedade capitalista tem inscrita em si uma tendência de crise, à medida que a orientação do capital para acumulação ilimitada – parasitando o mundo da vida, como coloca – tende a desestabilizar os processos reprodutivos que são indispensáveis à perpetuação da própria sociedade – e sem os quais “não pode haver cultura, economia ou organização política”.

Para Fraser, estas contradições assumem formas diferentes no centro e nas periferias do sistema capitalista mundial e também através de épocas ou “regimes de acumulação” sucessivos: o imperialismo liberal do século XIX e a extração colonial; o estado-providência fordista e o desenvolvimentismo do terceiro mundo de meados do século XX; e a globalização neoliberal do século XXI. Cada regime, argumenta, produz o seu remendo assimétrico para mitigar as contradições entre capital e cuidado: “as “esferas separadas” entre géneros na vida burguesa do século XIX; o crescimento das prestações sociais e o modelo homem empregado/mulher doméstica do fordismo; as famílias com os dois adultos empregados da emancipação neoliberal. Cada remendo, por sua vez, entra em crise. A manifestação mais recente desta tendência nos EUA é a ‘crise do cuidado’ – pobreza de tempo e desequilíbrio entre vida familiar e vida profissional – já atraía a tenção ainda antes da catástrofe reprodutiva da pandemia de Covid-19.

Trabalho doméstico perpetua-se por gerações

No entanto, a experiência brasileira – ou talvez, de forma mais geral, da América Latina – altera esta quadro. As histórias recolhidas por Preta-Rara não falam de ruturas nas formas de trabalho reprodutivo mas de continuidades entre gerações. “Quase todas as mulheres da minha família começaram as suas vidas como criadas domésticas” escreve uma mulher. “A minha avó foi escravizada – é essa a palavra certa – desde a infância. A minha mãe começou a trabalhar como ama da família quando era adolescente. A minha tia tem ataques de asma por causa do excesso de trabalho com produtos químicos de limpeza.”

“Quebrar o ciclo de miséria a que estamos sujeitas é uma tarefa dura”, escreve outra. “Significa lutar contra tudo e contra todos. A minha avó trabalhou toda a vida nos campos, a minha mãe foi criada e eu segui-lhe os passos. Ir contra tudo isto deixa cicatrizes físicas e na alma.”. O que está aqui em causa são continuidades históricas que remontam à época da escravatura – a ligação que Preta-Rara sublinha com o subtítulo do livro, identificando o quarto da criada com a sanzala. Algumas das narradoras usam o termo colonial sinhá – senhora – para se referirem aos patrões. Outras fazem a mesma ligação: “Estou sempre a pensar que, se a memória [do trabalho doméstico pago] me magoa, devem ter magoado muito mais a minha mãe e minha avó, porque – mesmo que em sentido figurado – elas tiveram de suportar o ‘chicote’ para que pudéssemos ter pão à mesa.”

Como referiu a cientista social e ativista brasileiras Lélia Gonzalez, para compreendermos o lugar da mulher negra na sociedade brasileira atual, temos de examinar o seu papel durante a escravatura. Gonzalez – ela própria filha de uma criada negra – resumiu o papel histórica da mucama negra: “O seu trabalho era manter a casa dos seus senhores a funcionar em todos os níveis: lavar, passar a ferro, cozinhar, fiar, tecer, coser e cuidar das crianças nascidas dos úteros “livres” das senhoras mais novas… E após o pesado trabalho na casa dos seus senhores, ela era também responsável por tomar conta dos seus próprios filhos, bem como de ajudar os seus amigos que chegavam esfomeados e exaustos das plantações, etc. A antropóloga argentina Rita Segato enfatizou o cariz de longue durée desta “maternidade transferida” na América Latina, que data dos primórdios do colonialismo e que foi naturalizada ao longo de séculos por uma série de formas culturais, predecessores do polvo púrpura de “Irmão do Jorel”.

A era desenvolvimentista no Brasil trouxe muitas mudanças, mas – pace Fraser – o papel da mulher negra na reprodução social manteve-se inalterado. Na realidade, ainda mais raparigas foram enviadas do interior para trabalhar como criadas nas cidades em crescimento acelerado. As histórias das redes sociais ilustram bem este processo: “A minha mãe vem de uma pequena aldeia no interior e foi enviada para a capital com treze anos para trabalhar” é um início típico. Esta “cadeia nacional do cuidado” – o fluxo migratório interno de raparigas e mulheres do interior brasileiro para as cidades, que atingiu o pico no auge do êxodo rural entre as décadas de 1960 e 1980 – tem o seu equivalente na “cadeia global do cuidado” de que falam Fraser e outros: a força do capitalismo financeirizado e globalizado a levar à emigração de mulheres racializadas dos países pobres para realizarem o trabalho social-reprodutivo nos países ricos – onde, com o início do declínio e colapso do modelo do “homem empregado/mulher doméstica”, as mulheres se dirigiam para o trabalho de colarinho branco assalariado.

Brasil é parte do fluxo migratório da cadeia global do cuidado

O Brasil é claramente parte do fluxo migratório da cadeia global do cuidado – como, de resto, é timbre da sua posição intermédia na economia mundial. As trabalhadoras domésticas imigrantes são, por exemplo, bolivianas, haitianas, venezuelanas e filipinas, cuja condição migratória se enquadra nas estruturas brasileiras de raça, classe e género. Por sua vez, as mulheres brasileiras emigram principalmente para o Norte global, especialmente para os EUA e para a Europa Ocidental.

Como explicar as continuidades da ordem social-reprodutiva brasileira quando comparada com os regimes sucessivos de que fala Fraser? Aqui, pode ser útil recuperar a noção de “colonialidade” desenvolvida pelo teórico peruano dos sistemas-mundo Aníbal Quijano, que sublinhou que as classes dominantes da América Latina no início do século XIX lutaram para prevenir a descolonização das suas sociedades ao mesmo tempo que lutavam pela independência. Através desta dinâmica, a “colonialidade do poder” foi incorporada no próprio processo de construção dos estados. A divisão sexual e racial do trabalho doméstico pago e a sua continuidade histórica com práticas que remontam às eras colonial e da escravatura sublinham a relação entre as relações socio-reprodutivas na América Latina e a sua hierarquia fundacional. Neste contexto, a “diferença do cuidado” não é um processo recente. É uma dinâmica inscrita na propria “colonialidade do poder”.

Assim, o trabalho doméstico pago é tanto uma expressão das desigualdades estruturais no interior da sociedade brasileira e um mecanismo para a sua perpetuação. A sua disponibilidade a baixo custo para as classes média e alta brasileiras diminui a eventual pressão para medidas de apoio às atividades socio-reprodutivas – creches, educação a tempo inteiro, cantinas e lavandarias comunitárias e centros de dia para os idosos. Como escreve Rita Segato na sua Crítica da Colonialidade em Oito Ensaios, de 2021, a continuidade do trabalho invisível e mal pago das mulheres permite a “fuga ao investimento social”.

Também alivia as tensões no interior das famílias de classe média e alta, onde o “turno duplo” de trabalho doméstico das mulheres é mitigado, tal como a exigência de que os seus parceiros e os outros membros da família façam a sua parte. Da mesma forma, como afirmou a socióloga americana Patricia Hill em Black Feminist Thought [Pensamento Feminista Negro] (1990), muitas famílias brancas dos EUA mantiveram historicamente a sua posição de classe porque usavam as criadas negras como trabalho barato. Ao mesmo tempo, a delegação do trabalho doméstico tende a intensificar as desigualdades raciais e de classe, acentuando a polarização entre mulheres – especialmente entre as trabalhadoras domésticas e as suas patroas.

Trabalhadoras domésticas foram duramente atingidas pela pandemia da covid

As trabalhadoras domésticas foram duramente atingidas pela pandemia de Covid, dada a proteção social frágil ou inexistente de que dispõem. Ficaram divididas entre continuar a trabalhar correndo um elevado risco de infeção ou pararem de trabalhar e perderem o seu rendimento. E não lhes foi dado o estatuto de trabalhador prioritário durante a vacinação.

O agravamento de condições sociais precárias sugere para alguns autores que estamos a avançar em direção ao passado. No seu livro Crítica da Razão Negra, de 2013, Achille Mbembe afirma que o mundo se está a tornar négre, à medida que o capitalismo acentua a exclusão, alienação e degradação dos trabalhadores em geral. De uma outra perspetiva, a questão do cuidado oferece um caminho para o futuro. Para o coletivo de Madrid Precarias a la Deriva, o cuidado devia ser o princípio orientador de todas as considerações político-económicas. Fraser defende que as lutas pela reprodução social – envolvendo habitação, cuidados de saúde, segurança alimentar, direitos dos migrantes e dos trabalhadores, cuidados à primeira infância, cuidados aos idosos, licenças parentais pagas – são “equivalentes à exigência de uma reorganização maciça das relações entre produção e reprodução”.

O cuidado e a reprodução social são também centrais para movimentos como o Quilombismo (ver https://www.academia.edu/4480687/Quilombismo_An_Afro_Brazilian_Political_Alternative_Abdias_do_Nascimento) e o Bien Vivir (ver https://vientosur.info/wp-content/uploads/spip/pdf/VS122_A_Quijano_Bienvivir—.pdf), que se focam nas práticas sociais baseadas na cooperação , na solidariedade e na igualdade. A produção e a reprodução andam lado a lado nestes projetos democráticos radicais. A resistência quotidiana tem lugar de múltiplas formas, mesmo quando é apenas dizer “Nunca mais ponho os pés naquele lugar!”. Uma coisa é certa: a sociedade brasileira nunca se emancipará sem a emancipação das trabalhadoras domésticas.

Autora: Ana Julieta Teodoro Cleaver

Fonte: Sidecar, 23 de novembro de 2021

URL: https://newleftreview.org/sidecar/posts/rebel-maids

Tradução: Pedro Estêvão

 

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