A rede EZA-Centro Europeu para os Assuntos dos Trabalhadores, do qual o CFTL faz parte, desenvolveu nos últimos meses um debate preparatório da Conferencia sobre o Futuro da Europa.No início deste mês o EZA entregou o seu contributo, em trinta e uma reivindicações, fruto de vários debates e ateliers onde foram debatidos os valores europeus, a saúde, a saúde e segurança dos trabalhadores, o Estado de Direito, o aprofundamento da democracia e a dimensão social da UE.Alguns dirigentes da BASE-FUT participaram nestes debates e elaboraram um documento base com uma análise e reivindicações que consideram especialmente importantes para o futuro da Europa, para além da paz que neste momento está em causa.
Aprofundar a democracia europeia
«O reforço da democracia na União Europeia é um dos objetivos urgentes a cumprir para garantir o futuro do projeto europeu. Existe hoje um profundo sentimento de afastamento entre os cidadãos europeus e as instituições da UE, traduzindo-se nomeadamente nas altas taxas de abstenção nas eleições para o Parlamento Europeu. Nas últimas eleições de 2019, a participação eleitoral foi de apenas 50%, e foi ainda inferior a um terço em países como a Eslováquia (22,74%), a Eslovénia (28,89%) e a República Checa (28,72%). Em Portugal, a abstenção foi igualmente maciça, atingindo 69,3%. Esta abstenção eleitoral constitui apenas um dos sinais do afastamento dos cidadãos em relação ao projeto europeu e mostra de forma inequívoca os riscos enfrentados pela democracia europeia. Com vista a fortalecer a participação democrática, a UE tem de se reinventar através de um amplo aprofundamento democrático.
Para muitos cidadãos europeus, a UE constitui uma entidade pouco conhecida, longínqua e, até, abstrata. Os atores europeus têm o dever de aproximar-se da vida dos cidadãos, explicar o funcionamento das instituições europeias e o impacto das suas decisões nas suas vidas. Existe assim uma necessidade de transparência e de participação democrática no espaço europeu. Sem esta aproximação da política europeia dos seus cidadãos, a democracia continuará a enfrentar graves perigos, colocando em causa a solidariedade entre países e o estado de direito.
Existe assim uma necessidade urgente de aproximar as instituições europeias da vida dos cidadãos. Este objetivo exige uma revalorização da voz dos europeus na gestão democrática da UE. É assim fundamental dar mais peso ao Parlamento Europeu, única instituição democraticamente eleita pelo conjunto dos cidadãos do espaço europeu. O Parlamento deve ser colocado no centro do sistema político europeu e deve ver reforçado o seu papel nas definições das políticas comunitárias e no controlo das outras instituições, nomeadamente a Comissão Europeia, o Conselho Europeu, o Banco Central Europeu e o Eurogrupo. É igualmente desejável uma maior transparência nos processos de decisões destes órgãos, que muitas vezes não chegam ao conhecimento dos cidadãos.
A democracia europeia deve tornar-se uma realidade quotidiana para os cidadãos. Neste contexto, o voto periódico em eleições não é suficiente. Deve-se construir novos mecanismos de democracia participativa e divulgar os que já existem. As iniciativas de cidadania europeia, que permitem propor iniciativas de mudança legislativas à Comissão, devem ser agilizadas, de forma a constituir uma ferramenta de participação. A introdução de mecanismos de orçamentos participativos, de controlo das instituições eleitas pelos cidadãos e debates amplos na sociedade europeia podem ser encarados como passos para uma maior democracia interna na UE.
Finalmente as instituições da UE devem mostrar que podem melhorar a vida dos cidadãos europeus e enfrentar os diversos desafios que emergem.
A UE deve falar com uma voz clara em questões centrais como as alterações climáticas, a justiça social, a integração dos refugiados, a regulação do trabalho ou ainda a luta contra a evasão fiscal. Deve falar com uma voz unida e saber tomar as decisões que permitam caminhar para o progresso social e o bem-estar. Se a UE mostrar-se eficaz em enfrentar estes desafios que se colocam na vida dos cidadãos europeus, dará um grande passo para uma reaproximação com as populações e uma maior participação democrática.
Uma União Europeia mais forte, precisa de organizações de trabalhadores mais fortes e capacitadas.
O desenvolvimento de estruturas abrangentes e vinculativas de contratação coletiva foi um dos mais importantes pilares da prosperidade do Centro e do Norte da Europa após a II Guerra Mundial. Estas estruturas assentam num modelo de regulação do mercado de trabalho tripartido, com participação governamental, dos sindicatos e das associações patronais. Este modelo assenta em diferentes níveis de negociação. Acordos nacionais serviam ao mesmo tempo de limiar mínimo e de base para a negociação de acordos setoriais e acordos de empresa – sempre sob o princípio de que ao trabalhador se aplicavam as condições mais favoráveis de todos.
As vantagens deste tipo de sistemas de relações laborais sólidos estão amplamente demonstradas. Para os trabalhadores, são a garantia de direitos, de uma repartição mais justa da riqueza criada e da representação adequada dos seus interesses na vida da empresa. Para as administrações das empresas, são um garante de paz social, de estabilidade de expetativas, de promoção da procura da qual beneficiam e também uma proteção contra a concorrência desleal, assente no dumping social e salarial.
Mas, para funcionar, este sistema requer a construção e manutenção política de um campo de negociação equilibrado – o que só acontece com governos que conferem ao trabalho a prioridade política que a sua importância social merece. E, claro, requer parceiros sociais fortes. Sem estes ingredientes, o sistema desarticula-se e as suas vantagens desvanecem-se.
Portugal é um dos casos em que tal aconteceu. Entre 2002 e 2015, assistimos a um projeto deliberado de enfraquecimento da negociação coletiva – e que nunca foi revertido desde então. Dois exemplos importantes foram a introdução da caducidade automática das convenções coletivas e a introdução de diversas exceções ao princípio do tratamento mais favorável. Em ambos os casos, a posição dos sindicatos foi severamente enfraquecida, dando origem a um definhar da qualidade e da abrangência da contratação coletiva.
A premissas de medidas como estas era de que o mercado de trabalho português era excessivamente rígido e que a sua desregulação encorajaria o investimento por parte das empresas e promoveria o aumento da competitividade da economia portuguesa.
Nada disto se verificou. Na verdade, e não sendo a única causa, o ocaso da negociação coletiva é um fator importante no fim do trajeto de convergência social e económica que marcou os primeiros 15 anos de Portugal na União Europeia. Em vez disso, Portugal leva agora cerca de 20 anos de taxas de crescimento anémicas e de acantonamento crescente da economia portuguesa em setores de baixa produtividade, como o turismo e as atividades imobiliárias. Portugal tem hoje dos salários mais baixos da União Europeia, com um salário mínimo a abranger mais de um quarto dos trabalhadores. É um país que, apesar de um esforço de elevação das qualificações, tem cada vez mais dificuldade em reter no país os seus jovens trabalhadores, com consequências gravíssimas para as suas perspetivas de desenvolvimento – e para as próprias empresas, que enfrentam cada vez mais dificuldades em reter mão de obra qualificada. De tal forma que, nas recentes eleições legislativas, emergiu um consenso esquerda e à direita, sob a necessidade imperiosa de subida dos salários – embora, naturalmente, as soluções para o conseguir variassem consideravelmente no interior do espetro partidário.
O caso português ilustra assim os perigos de longo prazo que o enfraquecimento dos sistemas da contratação coletiva e o enfraquecimento das organizações de trabalhadores acarretam para a economia e para a sociedade.
Inverter esta situação requer, claro, associações patronais qualificadas e representativas. Mas, acima todo, requer de reconstrução de um campo de negociação equilibrado e a inversão da tendência de enfraquecimento dos sindicatos e organizações de trabalhadores. E a União Europeia pode desempenhar aqui um papel chave, estabelecendo metas europeias sobre a qualidade e abrangência da negociação coletiva, promovendo a sindicalização e a capacitação dos parceiros sociais.
Segurança e saúde no trabalho como direito humano fundamental
A doença Covid-19 veio reforçar a necessidade de melhorar os sistemas de prevenção dos riscos profissionais e de promoção da segurança e saúde no trabalho.
Às 5000 mortes diárias por acidentes e doença profissional no mundo segundo a OIT, temos hoje que acrescentar as mortes por Covid 19 que tiveram lugar em larga medida por infecção no local de trabalho. Na Europa 25% dos casos Covid-19 ocorreram entre os profissionais de saúde.
Na UE-27, apesar dos progressos havidos na diminuição de acidentes de trabalho, em 2018 registaram-se mais de 3300 acidentes mortais e 3,1 milhões de acidentes não mortais e mais de 200.000 trabalhadores mortos anualmente de doenças relacionadas com o trabalho.
Para além dos custos económicos decorrentes desta realidade temos o sofrimento e a perda de vidas humanas inaceitáveis. A proteção da saúde e da segurança dos trabalhadores, consagrada nos Tratados Europeus e na Carta dos Direitos Fundamentais é um dos elementos fundamentais de uma economia da UE ao serviço das pessoas. Por outro lado, o direito a um local de trabalho saudável e seguro está consagrado no principio 10 do Pilar Europeu dos Direitos
Sociais, sendo também um elemento constitutivo da União Europeia da Saúde a construir.
Recentemente a Comissão Europeia aprovou a Estratégia Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho 2021-2027, anunciada no plano de acção sobre o Pilar Europeu que define algumas das principais prioridades e acções necessárias para melhorar a segurança e saúde dos trabalhadores nos próximos anos.
Em 2021, e na linha da declaração do Centenário da OIT os sindicatos mundiais, através da CSI, fizeram um esforço para que a segurança e saúde no trabalho venha a ser consagrada como direito humano fundamental igual que à liberdade sindical, negociação colectiva, protecção frente á discrimnação, ao trabalho forçado e trabalho infantil. Isto porque segundo Sharan Burrow, Secretária Geral da CSI “cerca de 2,3 milhões de pessoas morrem cada ano por causa dos acidentes de trabalho e a actual pandemia vem sumar-se a esta deplorável perda de vidas humanas.
Ainda no quadro da OIT, e apesar da relutância dos empregadores, vários governos apoiam esta reivindicação dos sindicatos bem como vários investigadores que trabalham esta matéria, como o Colégio Ramazzini, sociedade independente de peritos que pediram à OIT para que sejam implementadas as decisões adoptadas em 2019. Segundo esta Oraganização científica “Centenas de milhões no mundo inteiro sofrem lesões a cada ano, por causa do trabalho. Milhões ainda perdem a vida! Este massacre pode prevenir-se concedendo à proteção dos trabalhadores a maior prioridade possível bem como à saúde e segurança no trabalho, reconhecendo esta como um direito humano fundamental. A OIT deve actuar quanto antes reconhecendo a saúde e segurança ocupacional como um dos direitos fundamentais no trabalho. Nesta linha se pronunciaram outras entidades cientificas como Society of Occupational Medicine com sede na Reino Unido.
Mas nesta linha se pode também pronunciar o EZA aliás fundamentado também na Doutrina Social da Igreja que coloca no coração da mesma o direito humano fundamental à vida desde a concepção até ao seu fim natural. O trabalho e as condições do mesmo não podem continuar a ser atentado á vida do trabalhador.
Neste sentido o direito à segurança e saúde no trabalho tem que ser mais do que um direito económico e social, um factor de concorrência e competitividade. É um direito fundamental inerente à pessoa humana.
Ratificar a Convenção 190 sobre a prevenção do assédio e violência no trabalho. É muito importante que todos os Estados-Membros da UE ratifiquem a Convenção 190 da OIT e se promova uma iniciativa mais ampla e mais profunda, indo além dos Acordos Europeus assinados neste domínio entre os parceiros sociais no âmbito do diálogo social. A própria Comissão Europeia reconhece na Comunicação COM(2021) 323 final, de 28.6.2021, sobre o quadro estratégico para a SST de 2021-2027 que “já antes da pandemia os problemas de saúde mental afectavam cerca de 84 milhões de pessoas na UE. Metade dos trabalhadores da UE considera que o stresse é um aspecto comum no respectivo trabalho”. No mesmo documento a Comissão reconhece que com o teletrabalho e a utilização das TIC se motivou o aumento dos riscos psicossociais. Todavia a Comissão apenas prevê iniciativas não legislativas neste domínio, ou seja na prevenção dos riscos psicossociais e saúde mental.
No que respeita ao assédio e violência a Comissão reconhece que podem afectar os trabalhadores e suas famílias. E a Comissão estudará formas de reforça a eficácia da directiva Sanções aplicáveis aos empregadores (2009/52/CE)..» e que propôs uma decisão do Conselho que autoriza os Estados Membros a ratificar no interesse da UE, a Convenção 190 da OIT. Mas, mais do que autorizar a UE pode incentivar a ratificação por todos os Estados membros.
Também aqui os sindicatos, nomeadamente a CES, sem tirarem mérito ás acções de sensibilização levadas a cabo pelas instituições europeias, nomeadamente a OSHA, consideram que se deveria ir mais longe na prevenção dos riscos profissionais como o stresse , o assédio e ciberassédio e a violência no trabalho. A convenção 190 da OIT apresenta uma estrutura básica fundamental para a UE avançar de forma mais arrojada numa proposta legislativa mas alargada, e não apenas a prometida proposta para combater a violência do género e violência doméstica.
Considerando as dezenas de projectos de formação levados a cabo pelo EZA no domínio da segurança e saúde no trabalho, publicações editadas e relatórios de projecto existe margem para sugestões à Comissão neste domínio.
O terrível balanço da epidemia Covid-19, que ainda não terminou, exige um forte empenhamento dos Estados membros da UE, dos parceiros sociais e da Comissão na melhoria dos sistemas de protecção e promoção da saúde e segurança no trabalho. A defesa da vida dos trabalhadores ultrapassa os critérios económicos entrando na esfera dos direitos fundamentais.»
Lisboa, 03.02.2022