Seguindo à letra os manuais do fascismo, o governo norte-americano liderado por Donald Trump, marcou a sua ascensão ao poder com uma rápida barragem de mudanças de política radicais e profundamente antidemocráticas. Entre estas mudanças está uma viragem na sua política externa, assente no enterrar definitivo do multilateralismo e do assumir de forma crua o paradigma da política internacional como o jogo das grandes potências. Uma das consequências desta viragem foi o abandono do compromisso norte-americano do pós-guerra quanto à defesa da Europa (ocidental até 1989, alargada a leste depois disso). Se, como creio, o governo Trump é apenas o último episódio de uma transformação profunda na sociedade e na política norte-americana, então esta viragem será estrutural e não conjuntural – e deve ser abordada como tal.
Esta viragem acarreta grandes riscos, mas também apresenta oportunidades para uma redefinição radical dos princípios da política externa dos países europeus e da União Europeia – redefinição que pode, de forma mais ou menos direta, afetar as suas políticas económicas e sociais. É, por isso, fundamental que o movimento sindical (e as forças progressistas em geral) enfrentem esta questão, entrem na sua discussão e assumam um papel de relevo na definição dos seus termos e das soluções que vão ser desenhadas para lhes dar resposta.
Partimos de dois pressupostos nesta discussão: (a) que a “deserção” norte-americana quanto à defesa da Europa terá como consequência necessária uma redefinição da doutrina estratégica e das características das forças armadas dos países europeus; e (b) que esta redefinição passará pela necessidade de forças armadas melhor equipadas e, possivelmente, mais numerosas. Ora, se aceitarmos estes pressupostos, então temos de lidar com os riscos que lhe estão associados.
Defesa como meio para uma diplomacia forte
Desde logo, é preciso garantir que a defesa é pensada exclusivamente como um meio de garantir uma diplomacia forte e não como uma forma de recuperação da funesta tradição europeia de agressões militares, no interior do continente e fora dele. Isto implica duas coisas:
- Por um lado, assumir que não é possível desligar completamente capacidade diplomática de capacidade militar. Devemos recordar exemplos como os da Suécia (antes da sua adesão à NATO) e da Suíça. Desde o século XIX, estes países que praticaram uma neutralidade rigorosa e, por via disso, assumiram um peso diplomático desproporcional à sua dimensão – sabendo sempre que essa neutralidade e esse peso diplomático não dispensavam a manutenção de forças armadas relevantes e preparadas.
- Por outro lado, erradicar de vez os resquícios imperialistas e neo-colonialistas que continuam a subjazer às políticas externas da União Europeia e de vários dos seus membros – problema de que a França será o maior expoente, embora não único. Uma forte capacidade diplomática depende ao mesmo tempo de relações cordiais e de uma neutralidade rigorosa face às grandes potências – EUA, Rússia, China – e aos seus blocos e essa neutralidade é incompatível com práticas de ingerência sistemática nos assuntos internos de outros países.
Depois, é necessário evitar que a defesa se torne num sorvedouro de recursos que prejudique áreas fundamentais do estado-providência, como a saúde, a educação ou as políticas sociais. E – questão estreitamente relacionada com esta – temos de garantir que o crescimento da indústria de defesa europeia não desagua na criação de um complexo industrial-militar que, à imagem do que sucede nos EUA, assuma uma influência desmesurada sobre a política interna e externa dos países europeus.
- Para tal, é fundamental rejeitar que o peso da despesa com defesa no PIB seja a medida central nesta questão. É bem possível que o problema no plano do financiamento da defesa não seja tanto de volume, mas sim de eficiência – ou seja, gastar o mesmo, mas de forma adequada e bem pensada. Ora, tal eficiência só pode ser alcançada com ganhos de escala – ganhos esses que, provavelmente, implicam uma política de defesa à escala do continente e não apenas dos países
- Ao mesmo tempo, é preciso evitar que essa política continental seja feita à imagem de um ou dois países que são claramente mais poderosos militarmente do que os outros – a França é, novamente, o grande engulho europeu nesta matéria. Ora, uma política europeia de defesa tem de atentar à realidade, necessidades e vantagens comparativas de cada país. Portugal, cuja Zona Económica Exclusiva é 18 vezes superior à sua área terrestre, deve assumir que o seu contributo para a estratégia de defesa europeia se fará através da melhoria da quantidade, qualidade e preparação dos seus meios navais e aero-navais e muito menos ao nível das forças terrestres.
Não ao militarismo europeu
Finalmente, repensar as capacidades das forças armadas europeias não pode significar o regresso do militarismo como referencial de valores éticos e políticos para as sociedades europeias– um fenómeno que contribuiu para as tragédias da I e II Guerras Mundiais e para a onda fascista que submergiu a Europa no período entre ambas (e que, nos casos português e espanhol, se prolongou bem para lá dele). Pelo contrário, a redefinição das características das forças armadas dos países europeus tem de implicar o aprofundamento do seu carácter democrático. A transparência no funcionamento das instituições militares e no seu relacionamento com as restantes instituições políticas e económicas do país, a preocupação com a vida, a segurança, o desenvolvimento profissional e o bem-estar dos homens e mulheres de todas as patentes que servem nas forças armadas e o reconhecimento de direitos de associação sindical aos militares – com o reconhecimento implícito de que são trabalhadores e não uma casta à parte na sociedade – são elementos fundamentais nesse aprofundamento democrático.
Mas a viragem dos EUA também gera oportunidades políticas e económicas para uma agenda progressista, não só na área da defesa e da política externa como em planos mais vastos. Deixo três exemplos.
Em primeiro lugar, a “deserção” dos EUA levantou também os impedimentos que existiam a uma política externa autónoma por parte da Europa e dos países europeus. Basicamente, se os EUA já não garantem a segurança da Europa, porque é que a Europa deve continuar a subordinar as suas prioridades de política externa às prioridades dos EUA? Na realidade, esta subordinação teve sempre um custo elevado para a credibilidade e força diplomática dos países europeus – com um conjunto de danos ao longo dos anos de que raramente se fala. Este custo era ignorado porque constituía um excelente negócio – em termos financeiros – para os europeus. Mas esteve sempre lá. Não é preciso recuar mais do que ao caso da Ucrânia. A indiferença da larga maioria dos países não-europeus face à luta dos ucranianos contra a invasão russa é, em boa medida, o reverso diplomático da ambiguidade vergonhosa dos países europeus (com as honrosas exceções da Espanha e da Irlanda) face ao genocídio do povo palestiniano perpetrado por Israel.
A elevação da neutralidade rigorosa a novo princípio cardinal das políticas externas e de defesa europeias – algo que é fundamental para a recuperação da força e credibilidade diplomática dos países europeus – abre horizonte para uma espécie de recuperação (pelo menos parcial) do projeto do movimento dos não-alinhados para o século XXI, com a construção de alianças diplomáticas entre a Europa e países que, pela sua dimensão e prática, dispõem também de autonomia estratégica – como o Brasil ou a África do Sul – ou com países com quem, mau grado a histeria xenófoba da extrema-direita, a Europa está profundamente imbrincada em termos geográficos, culturais e políticos como é o caso dos países da margem leste e sul do Mediterrâneo. Estas alianças – que podem, claro, envolver ainda outros países – devem assentar no chão comum da rejeição do “jogo das grandes potências” e na promoção do multilateralismo e do primado do direito internacional como princípios da relação entre estados e na recuperação e reforço das Nações Unidas como o fórum privilegiado para a resolução de conflitos entre eles.
Em segundo lugar, é preciso forçar a brecha aberta no dogma da austeridade pela aceitação do levantamento de limites orçamentais no caso da despesa em defesa. Perante a rapidez e facilidade com que os outrora sacrossantos limites orçamentais foram descartados a propósito da defesa (que é o exemplo acabado de “despesa improdutiva”!), uma agenda progressista não se deve limitar a denunciar a dualidade gritante de critérios face às políticas sociais. Deve exigir que o mesmo tratamento se estenda a áreas que são fundamentais para o bem-estar da população, como a habitação, educação e a saúde.
Em terceiro lugar, uma política de defesa europeia equilibrada e plural pode constituir um fator de recuperação da política industrial e consequente investimento público sistemático em setores económicos de forte incorporação tecnológica e alto valor acrescentado. No caso português, uma política europeia de defesa com aquelas características pode ser catalisadora do desenvolvimento de clusters como os das indústrias naval, aeronáutica e aeroespacial. Tal pode ser um contributo relevante para romper com o modelo de desenvolvimento assente em baixos salários e no sobredimensionamento de setores pouco produtivos, como o turismo ou o imobiliário.
Texto de preparação do XVIIIº Congresso Nacional da BASE-FUT