O jornalista Dniel Boffey do Guardian escreve sobre a política da multinacional Rio Tinto a segunda maior empresa de mineração do mundo na Sérvia.Embora longo o texto é ilucidativo sobre as práticas destas empresas para coseguirem os seus objectivos.
«Um indicador de bateria, a piscar num nível perigosamente baixo, aparece sobreposto a uma representação do globo vista do espaço. “Tecnologias verdes, carros elétricos, ar puro – tudo depende de um dos maiores depósitos de lítio do mundo, localizado aqui mesmo, em Jadar, Sérvia” anuncia a voz grave do narrador. “Compreendemos a sua preocupação com o ambiente. A Rio Tinto está a levar cabo análises detalhadas, para termos a certeza que estamos a desenvolver o projeto de Jadar em linha com os mais elevados padrões ambientais, de segurança e sanitários.”
Transmitido para todas as casas através do serviço público de televisão RTS, o anúncio apelativo, mostrado logo após o telejornal, termina com imagens de cientistas reconfortantes e de um jovem casal a caminhar em direção ao por do sol: “Rio Tinto: Juntos podemos salvar o planeta.”
Aparecer como salvador ecológico e bastião da transparência é algo improvável para a Rio Tinto, a segunda maior empresa mundial de mineração e metais. Ao longo dos seus quase 150 anos de história, a multinacional anglo-australiana, que registou lucros de 7,3 mil milhões de euros em 2020, tem enfrentado numerosas acusações de corrupção, crimes ambientais e abusos dos direitos humanos.
Rio Tinto:Uma multinacional que apresenta uma face verde sendo uma malfeitora empresarial
A Rio Tinto está atualmente envolvida num processo judicial movido pela Comissão de Valores Mobiliários dos EUA, que acusa a empresa de fraude no seu negócio de extração de carvão em Moçambique. Este processo segue-se à aplicação, pelo regulador financeiro britânico, de uma multa de 29,1 milhões de euros por violação de regras de transparência.
O diretor da Rio Tinto para as operações de minério de ferro, Simon Trott, reconheceu já este ano que a empresa “não estava orgulhosa da sua história” na mina de Marandoo, na Austrália Ocidental, onde centenas de artefactos arqueológicos foram despejados numa lixeira. No ano passado, o então diretor executivo demitiu-se depois de a empresa ter dinamitado um dos mais importantes sítios arqueológicos da Austrália, uma caverna com vestígios de 46 000 anos de ocupação humana contínua. No último verão, e após décadas de apelos, a empresa acedeu finalmente a financiar uma “avaliação do impacto ambiental e sobre os direitos humanos” da sua antiga minha de cobre e ouro em Panguna, na Papua Nova Guiné, onde alegadamente foram despejados mil milhões de toneladas de escórias no delta do rio Kawerong-Jaba e que continuam a causar danos catastróficos.
É uma história perturbadora. Um crítico disse que a Rio Tinto pode ser vista como “um exemplo acabado da malfeitoria empresarial”. Mas para os executivos da Rio Tinto, e apesar dos atuais lucros astronómicos, o futuro também é causa de preocupação. O valor das suas ações tem caído. O preço do minério de ferro está sob a pressão da maciça produção chinesa. Escândalos na Austrália têm posto em risco a futura expansão da empresa e a sua gestão de uma grande mina de cobre na Mongólia tem sido fortemente criticada.
É neste contexto que a corrida mundial para a descarbonização e os esforços da União Europeia para atingir a autossuficiência em matérias-primas – necessárias para atingir os objetivos climáticos – chamou a atenção da empresa.
Poltica da Rio Tinto na Sérvia
Em julho, a Rio Tinto anunciou que iria investir 2,1 mil milhões de euros no vale de Jadar, no oeste da Sérvia, no sopé das montanhas Cer e Gučevo, na construção do que será a maior mina de lítio da Europa e uma das maiores do mundo.
A empresa estima que a mina terá uma vida estimada de 40 anos, produzirá 2,3 milhões toneladas de carbonato de lítio, um mineral crítico para as baterias dos veículos elétricos e para o armazenamento de energia renovável, e 160 mil toneladas anuais de acido bórico, necessário para equipamento de produção de energia renovável, como painéis solares e turbinas eólicas.
A Rio Tinto afirma que isto tornará a mina num dos 10 maiores produtores de lítio do mundo e que produzirá o suficiente para mais de 1 milhão de carros elétricos por ano, cujas vendas deverão crescer de 1,2 milhões de veículos em 2017 para pelo menos 23 milhões em 2030, de acordo com a Agência Internacional de Energia.
A União Europeia, com quem a Sérvia tem um acordo de associação, importa todo o lítio de fora de Europa. As negociações para fornecimento aos maiores fabricantes de automóveis alemães já começaram. Quatro contentores transportando equipamento para a fábrica de processamento de lítio já deixaram a Austrália, com destino à Sérvia.
O projeto está a ganhar impulso. Mas ativistas preocupados e zangados, incluindo milhares de manifestantes nas ruas das cidades sérvias de Loznica e de Belgrado, dizem que estão a assistir ao início de um desastre para o “celeiro” do país (a região é responsável por um quinto da produção agrícola da Sérvia). Questionam as estranhas parcerias criadas pela “revolução verde” e se se aprendeu alguma coisa sobre os modos de consumo e de produção que tornaram a transição para um mundo descarbonizado tão urgente. As deficiências da democracia sérvia também deixam dúvidas sobre se são ouvidas as vozes daqueles que serão diretamente afetados.
Passaram 17 anos desde que o lítio, um metal alcalino de cor prateada-clara, foi descoberto por acaso por geólogos da Rio Tinto em dois furos de prospeção num milheiral no vale do Jadar. A equipa estava à procura de borato, que é usado em fertilizantes e materiais de construção, mas encontrou algo inesperado: boratos e lítio num só minério, uma combinação que seria mais tarde chamada de jadarite, devido ao nome do vale.
Marijana Petkovic, 47, professora, vive com o marido, Nebojša, 49, e duas filhas em Gornje Nedeljice, uma das nove aldeias que serão mais afetadas pela minha projetada. Ela lembra-se do dia em que os homens da Rio Tinto chegaram.
“Eles recolhiam amostras e estavam por aqui todo o tempo. Ficamos a conhecê-los e eles eram convidados para tomar café, almoçar, para as festas e eventos locais. Eram sérvios”, disse. “Falavam-nos sobre uma pequena mina, de 20 hectares, e que nem sequer nos aperceberíamos de que ela estaria lá.”
Nos anos seguintes, a Rio Tinto começou a fazer doações para causas locais. A escola de Gornje Nedeljice recebeu fundos para renovar as salas de aula. A sede do clube de futebol local recebeu um novo telhado e os agricultores receberam vouchers para adquirirem equipamentos agrícolas caros. Entre as 107 doações feitas desde 2003, num valor total de cerca de 500 mil euros, houve até uma doação para a quermesse de Natal.
«Fómos estúpidas, não percebemos»
“Após um ano ou dois, a mina já teria 80 hectares”, disse Petkovic. “Depois, em setembro do ano passado, recebemos cartas informando-nos de que as nossas terras seriam reclassificadas, deixando de ser terras agrícolas e passando a ser terras destinada à construção. Lembro-me que uma amiga me convidou para ir a casa dela, onde uma senhora da Rio Tinto perguntava às mulheres que lá estavam o que que esperavam da mina e nos falava das oportunidades nos podiam interessar… Fomos estúpidas. Não percebemos.”
A Rio Tinto não admitiu os números referidos por Petkovic, mas reconheceu que os planos tinham evoluído. De acordo com o plano publicado pelo governo sérvio em março, a zona em risco de afundamento terá cerca de 850 hectares, o tamanho de mais de 1000 campos de futebol.
A mina principal ficará num local de apenas 200 hectares nas margens do rio Korenita, um afluente do Jadar, com mais algumas centenas de hectares reservados para depósitos de resíduos e para infraestrutura de transporte. A escavação terá lugar sob o leito dos dois rios, onde o lítio foi identificado em profundidades entre os 100 e os 650 metros.
Em 2014, cheias no Korenita levaram a uma descarga de uma barragem para uma mina de carvão abandonada, resultando na inundação de terras de cultivo com material tóxico. A Rio Tinto diz que pretende converter os resíduos líquidos da mina em “bolos” secos, mais seguros de armazenar. A empresa está também a elaborar planos de contingência para o evento de uma cheia com uma probabilidade de ocorrer “uma vez em 10 000 anos”, só por precaução.
A mina implicará o realojamento voluntário ou forçado de 81 famílias e a compra de terras de 293 proprietários. A brochura distribuída aos que serão afetados afirmava que a expropriação de casas e terras seria “um último recurso”.
A empresa alega que já comprou 80% da terra e das propriedades, por valores que Petkovic diz serem “inéditos”, chegando a centenas de milhares de euros em alguns casos, com um preço base de 470€ por metro quadrado. A Rio Tinto oferece ainda bónus de 5% para quem completar a venda no prazo de quatro meses após a oferta.
Cerca de 30 casas foram já compradas na aldeia de Petkovic. Sabendo que estas estão destinadas à demolição, os seus antigos proprietários arrancam janelas, portas e até telhados, deixando um cenário desolador para aqueles que resistem ao dinheiro da Rio Tinto ou a quem ainda não foi oferecido nada. “Os nossos vizinhos fizeram-no, pelo que nós também tivemos de o fazer”, disse Živana Šakic, de 67 anos, que vendeu a sua casa recentemente.
Perto do local proposto para a mina, fica a necrópole de Paulje, datada de 1500-1000 A.C., o maior cemitério da idade do Bronze nos Balcãs centrais. A Rio Tinto pagou a um museu local para realizar uma escavação arqueológica. Centenas de artefactos, incluindo peças em barro, joias, ferramentas de pedra e bronze e um altar foram descobertos até agora.
Zlatko Kokanovic, de 45 anos, um veterinário que cultiva cerca de 32 hectares de terra com o seu irmão, no interior dos quais foram encontrados cinco túmulos da idade do bronze, disse que rejeitou todas as tentativas da Rio Tinto para adquirir as suas terras para excavação. “Nunca me comprarão. Terão de me roubar!”, disse o pai de cinco filhos.
Existem também duas Áreas Importantes para a Preservação de Aves e Biodeversidade reconhecidas como críticas para a conservação de populações de aves. “Mas até agora, não se identificaram riscos para a fauna existente nestas zonas… Nenhuma atividade decorreu ou decorrerá durante o período de nidificação ativa das aves”, acrescentou o porta-voz da empresa.
A obtenção de lítio implica um pesado fardo ambiental
Todavia, a obtenção de lítio implica um pesado fardo ambiental, com a geração, durante o tempo de vida da mina, de 57 milhões de toneladas de resíduos. A utilização média estimada de água é de 6 a 18 litros por segundo, ou seja, 1,3 litros de água por cada quilograma de produto. Quanto às emissões de carbono, a empresa diz na sua página de internet que “prevê” a utilização de energia renovável.
“Este tipo de minas situa-se sobretudo em desertos, precisamente por causa do seu efeito prejudicial para o ambiente e a biodiversidade”, afirma a Professora Dragana Đorđević, diretora do departamento de engenharia e química do ambiente da Universidade de Belgrado. “As bacias dos rios Drina e Sava, das quais depende o abastecimento de água de 2,5 milhões de pessoas, estão em perigo.”. A Rio Tinto nega estas afirmações.
A Rio Tinto encomendou 12 estudos de impacto ambiental, mas não aceitou disponibilizar nenhum ao The Guardian. A empresa também recusou todos os pedidos para uma entrevista.
Mas um estudo financiado pela empresa, resumido numa apresentação a que este jornal teve acesso, oferece algumas pistas. O Dr. Imre Krizmanic, da faculdade de biologia da Universidade de Belgrado, defende que será fraco o impacto das medidas de limitação dos danos para mais de 145 espécies protegidas, de lobos, castores e morcegos a salamandras, tartarugas, libelinhas, peixe, flora e fauna.
Apresentação conclui que “devido às mudanças irreversíveis que são esperadas em certos ecossistemas, bem como aos riscos significativos para o mundo vivo dos rios Jadar, Drina e cursos de água a jusante, a melhor e mais simples medida para prevenir as consequências negativas para a biodiversidade nesta área é o cancelamento da exploração e do processamento do mineral jadarite que estão previstos.”
Se bem que o projeto de Jadar não tenha ainda as autorizações necessárias para a construção, a Rio Tinto está confiante de que o ministério do ambiente sérvio lhe dê luz verde após a submissão do estudo de impacto ambiental no final deste ano.
Um porta-voz da Rio Tinto disse o seguinte do local proposto para a mina: “quase todas as espécies existentes neste local podem ser encontradas na Sérvia ocidental e noutros locais. Por outras palavras, todas as espécies poderão continuar a sua vida fora deste território, o que quer dizer que o impacto na biodiversidade será mínimo.”
O presidente da Sérvia, Aleksandar Vučić, disse em janeiro num talk-show: “Não temos acesso ao mar nem recursos naturais que nos tragam milhões. Temos a jadarite e morro de riso quando oiço pessoas a protestar por causa disso. Protestam aqui e no oeste da Sérvia por causa da Rio Tinto e dizem que vai ser um desastre. Não. Não vai acontecer nenhum desastre lá!”
Vučić deu a entender que poderia submeter o assunto a um referendo. Mas Miroslav Mijatović, da ONG Equipa Anti-Corrupção Podrinje (Pakt), receia que o governo esteja a rever as regras sobre os plebiscitos. “Tanto o atual como o anterior governo comportam-se de uma forma clientelar relativamente à empresa e adaptam as leis às suas necessidades”, afirmou.
Quanto à ameaça eleitoral colocada por uma mina impopular, as atas de uma reunião entre a Comissão Europeia e executivos da Rio Tinto, acedida através das leis de liberdade de imigração, enfatizam que representantes da EU foram oficialmente informados que “a construção do local [irá] começar a partir [do 2º trimestre] de 2002 – após as eleições na Sérvia (março de 2022)”.
As promessas da Rio Tinto
A Rio Tinto afirma que criará 2 000 empregos durante a construção da mina e 1 000 postos de trabalho efetivos, oferecendo uma contribuição direta de 1% e uma contribuição indireta de 4% para o PIB sérvio. Mas os opositores ao plano têm dificuldade em ver para lá da destruição iminente de uma comunidade e do seu modo de vida.
Dragan Karjcic, de 51 anos, presidente da junta de freguesia que tem campos de milho e de soja perto do local destinado ao depósito de resíduos, alude à reputação da Rio Tinto de “deixar desertos à sua passagem”: “Não lhes cedia as minhas terras, nem que fosse para uma fábrica de chocolate com o nome da Rio Tinto”, disse.
Vladan Jakovljevic, de 60 anos, apicultor na aldeia de Stupinica, teme que a mina deixe as suas abelhas numa terra devastada, sem nada para se alimentarem.
Ratko Ristic, um professor de engenharia florestal, que tem pressionado com outros a Academia Sérvia de Ciências e Artes contra a mina de Jadar, afirma que “os eventuais benefícios [da mina] para o estado sérvio situam-se entre os 7 e os 30 milhões de euros por ano; o rendimento possível através de atividade agrícola avançada na mesma área poderia ser mais de 80 milhões por ano, sem poluição nem transferência de população.”
Uma petição contra a mina recolheu mais de 130 000 assinaturas – cerca de 2% da população sérvia. A empresa já teve de pagar pequenas indemnizações devido a fugas em terras onde decorreu a pesquisa geológica.
A luta das populações
A Pakt apresentou uma queixa na procuradoria de Loznica contra a Rio Tinto (que assumiu na Sérvia a designação de Rio Sava Exploration), argumentando que a empresa violou as suas licenças de pesquisa ao despejar ilegalmente detritos e ter camiões a atravessar pontes frágeis.
A Rio Tinto disse não ter sido contactada sobre isto e que “as autoridades competentes confirmaram que as atividades da Rio Sava Exploration estão em linha com a legislação aplicável”.
Todavia, as garantias da empresa de que agirá em conformidade com a legislação sérvia e europeia é um fraco consolo para a população local. Ainda que a Sérvia esteja obrigada a alinhar a suas leis sobre gestão da água, de resíduos e de emissões industriais com as da EU como parte do seu processo de adesão, a Comissão Europeia admitiu, numa carta aos advogados da campanha anti-mina Mars Sa Drine (Marcha sobre o Drina), que embora a Sérvia tenha registado alguns progressos quanto ao alinhamento com a legislação europeia… a implementação ainda está numa fase inicial”.
Lucas Bednarsk, autor de “Lítio: A corrida global pelo domínio das baterias e nova revolução energética”, afirmou que é defensável o argumento moral de que a Europa deve suportar os custos ecológicos da extração do lítio de que necessita” e que atualmente é importado da Austrália, da América Latina e da China.”
Mas Meadhbh Bolger, da Friends of Earth Europe, observa que as baterias para carros elétricos deverão fazer aumentar a procura por lítio em quase 6000% até 2050 – e pergunta porque é que este consumo não é questionado.
“Continua a não se falar sobre a redução da procura”, diz Bolger. “Perguntámos à Comissão Europeia, que nos respondeu que não estávamos num momento em que se pudessem considerar restrições. A razão pela qual chegámos a este ponto foi a exploração de recursos, demasiada extração, para satisfazer as necessidades dos ricos e da indústria Europeia… E é o que estamos a fazer outra vez.”
Daniel Boffey
The Guardian, a 19 de fevereiro de 2021
Tradução: Pedro Estêvão