Pedro Estevão*
Tivemos na última semana a cimeira social do Porto e queria aqui partilhar convosco algumas perplexidades e reflexões a propósito dos seus resultados.
Como sabem, a cimeira serviu para aprovar o plano de ação do Pilar dos Direitos Sociais, plano esse que estabeleceu algumas metas concretas para as políticas sociais e para as políticas de emprego na União Europeia até 2030. As mais importantes são: o aumento da taxa de emprego entre os 20 e os 64 anos para os 78%; a redução do número de pobres em 15 milhões; e o aumento da proporção dos adultos em aprendizagem ao longo de vida para os 60%.
As metas da Cimeira Social não oferecem grande contestação
Em si mesmas, estas metas não oferecem grande contestação. O que devemos interrogar é, por um lado, porque são tão tímidas e, por outro, se os fatores que permitem que elas sejam cumpridas em Portugal estão sequer assegurados.
Muito se poderia dizer sobre a criação de emprego num contexto em que o investimento público nunca recuperou, nem de longe, os níveis anteriores ao período da Troika. Ou sobre a aposta exclusiva na educação como bala mágica para os problemas sociais e laborais do país, quando a despesa em educação em proporção do PIB continua longe dos níveis pré-troika.
Mas, no tempo que tenho, gostaria que falar da meta da redução de 15 milhões de pobres na UE. Ora, a pobreza, camaradas, é o resultado de dois fatores que são absolutamente indissociáveis: trabalho insuficiente e sem qualidade; e fragilidade da segurança social.
Sobre o primeiro fator, a CGTP tem repetido – e bem – até à exaustão a necessidade de Portugal romper com um modelo económico assente em baixos salários. Mas ainda assim vale a pena referir alguns indicadores que mostram o quão baixos são os salários em Portugal. Em 2018, a mediana dos ganhos por hora dos trabalhadores portugueses, quando ajustada ao poder de compra, era menos de metade da média da UE. Era só a 2ª mais baixa da Europa, apenas acima da Bulgária e abaixo mesmo de países como a Lituânia, a Letónia, a Hungria ou a Roménia!
Outro indicador: em abril de 2006, a proporção de trabalhadores abrangidos pelo salário mínimo era de apenas 4%. Em abril de 2019 – que são os últimos dados publicados pelo governo – o salário Mínimo abrangia já 25,9% dos trabalhadores. Isto significa que um quarto dos trabalhadores em Portugal recebia o salário mínimo!
Estagnação do Indexante de Apoios Sociais (IAS) é factor de pobreza em Portugal
Isto são dados que nos deviam envergonhar enquanto país, camaradas! E deveriam envergonhar qualquer governo que tivesse um mínimo de sensibilidade para as questões do trabalho! Mas não acontecem por acaso. São, em grande parte, o resultado da anemia da contratação coletiva e dos desequilíbrios inscritos na legislação laboral desde 2003 que promovem essa anemia, incluindo a caducidade da contratação coletiva e a forma como ficou comprometido o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador. O resultado é este: salários que são mantidos artificialmente baixos e um salário mínimo que é cada vez mais um salário normal, incapaz de impulsionar, por via da contratação coletiva, os salários que lhe estão imediatamente acima.
Mas há outra metade do problema da pobreza que tem sido menos falada, que é a crescente fragilização da proteção social em Portugal. Deixo-vos com um exemplo paradigmático desta fragilização que é a estagnação do Indexante de Apoios Sociais – o IAS. O IAS é o referente para o cálculo dos limiares mínimos de uma série de prestações sociais, como o subsídio de desemprego ou o subsídio de doença e é também o referente para cálculo dos escalões do abono de família e até para o cálculo do limiar mínimo de tributação em IRS.
O IAS foi criado em 2006, para desligar o salário mínimo do cálculo das prestações sociais – uma opção política que tem que se lhe diga. Mas façamos uma comparação sobre o que aconteceu entretanto num e noutro caso. O salário mínimo nacional é hoje, em termos reais, superior em 38% ao valor de 2007. Mas o IAS vale hoje, em termos reais, menos 4% do que valia em 2007! Ou seja, partindo de um valor muito próximo do salário mínimo em 2006, o valor do IAS é hoje 438,81€ – pouco mais de 2/3 do salário mínimo.
Porque é que esta estagnação do IAS é grave? É grave porque torna os limiares mínimos das prestações sociais e os escalões do abono de família perigosamente baixos. Num país com uma mediana de salários tão baixa e onde um quarto dos trabalhadores está abrangido pelo salário mínimo, significa que eventos como o desemprego, a doença ou até ter filhos resultam quase automaticamente na queda dos trabalhadores na pobreza. Nestas condições, podemos e devemos indignar-nos por 11% dos trabalhadores portugueses – isto é quase meio milhão de trabalhadores – serem trabalhadores pobres. Mas não podemos é estar surpreendidos com isso.
A estagnação do IAS é grave até porque pode sabotar o aumento do salário mínimo. É que se o aumento salário mínimo continuar a não ser acompanhado pelo aumento do IAS, corremos até o risco de o salário mínimo ultrapassar o limiar mínimo de tributação em IRS – e ver os trabalhadores perderem pela via fiscal o que ganharam pela via salarial.
Actualizar o IAS é hoje uma reivindicação central
Há muitos problemas que afetam a segurança social em Portugal e não temos tempo agora para falar de todos. Mas a atualização significativa do IAS deve estar, neste momento, entre as reivindicações da central – eu diria mesmo, intimamente ligada às justas reivindicações de aumento do salário mínimo.
Em suma, pensar, como faz o plano de ação do Pilar, em metas de redução da pobreza sem pensar em salários e em segurança social, não faz sentido. E falar em salários e segurança social sem falar em contratação coletiva, legislação laboral, força do movimento sindical e adequação das prestações sociais, faz ainda menos sentido. E essa é uma enorme falha do plano de ação do Pilar.
Finalmente, queria deixar aqui o meu comentário sobre as ausências dos camaradas da corrente socialista e bloquista. Eu divirjo deles em várias coisas. Mas concordo num ponto fundamental: a possibilidade de apresentação, defesa, crítica e votação de resoluções alternativas no Conselho Nacional só pode enriquecer o debate e a reflexão que é produzida pelo Conselho Nacional. A expressão máxima da diversidade na reflexão é, para mim, uma condição – e não uma ameaça – à unidade na ação. A minha expressão de solidariedade com eles será a minha abstenção na votação da proposta de resolução apresentada pela CECO, esperando, sinceramente, que esta situação se resolva rapidamente
*Intervenção do Pedro Estevão, Coordenador Nacional da BASE-FUT, no Conselho Nacional da CGTP