Ulisses Garrido*
Lourenço[1] é jovem, fez o rali das empresas, conseguiu emprego na caixa do supermercado. Na verdade, é tudo o que seja preciso, limpa, repõe… Sucessivos contratos de curta duração, salário mínimo, ou melhor mais 20 euros por mês (para dizerem que pagam acima do mínimo), sem horário de trabalho, pois as horas extras não pagas… dariam uma fortuna, costuma ele dizer. Mas que fazer? Não vê como sair deste inferno. Quando fala com Carla[2], sua namorada, por vezes exaltam-se. Têm vontade de ser família, viverem juntos, terem filhos, mas assim , como poderão? Ela, a Carla, trabalhava no Mc Donalds.
Ele trabalha no Aldi[3] (mas podia ser em muitos outros). O sindicato veio lá à porta da empresa, em ações contra a precariedade[4]. O Sindicato da Inter conseguiu obrigar a empresa a compromissos. O Ministério envolveu-se nas coisas[5].Um problema é que o pessoal não quer sindicalizar-se. Dizem que o sindicato não faz nada e não se justifica pagar quotas. Mas sem sócios e “sem nos mexermos todos juntos”, o sindicato pouco pode conseguir.
Já a Carla é agora uma das precárias que o McDonalds atirou para o desemprego, logo agora, em período de pandemia[6].
É assim a vida de muitos jovens, precários praticantes do rali das empresas ou “modernaços” explorados via plataformas. A geração mais qualificada de sempre não tem horizonte, não usa o seu potencial, como pode ter ambição que sirva o País e a humanidade?
Segundo a PORDATA[7], em 4,084 milhões de trabalhadores, 850..000 são precários. Ou seja mais de 20%. Há seguramente margens de trabalhadores e da economia não incluídas. Há outros números, mais de 1 milhão, muito provavelmente mais próximos da realidade. Mas quem são os precários? Difícil uma descrição precisa, concisa e clara. Até porque a realidade é dinâmica e a criatividade exploradora é imensa. Marco Marques, da Associação de Combate à Precariedade disse que “a precariedade é uma condição e não depende apenas do vínculo contratual. Os que têm contratos a prazo, contratos de prestação de serviços, a recibos verdes, situações de trabalho temporário ou de subemprego são efetivamente precários”, para já não falar dos falsos recibos verdes e dos empresários individuais (nos casos em que é “convidado” a sê-lo pela empresa onde era empregado, p.e.). A Associação de Combate à Precariedade[8] define
como trabalhador precário, “uma pessoa que está numa relação laboral, no contexto da qual não consegue aceder a uma série de direitos que estariam afetos a essa relação laboral, por exemplo, a estabilidade, a remuneração garantida e periódica, o acesso a uma indemnização quando deixa de estar vinculada e o acesso a um sistema de saúde.[1]” Neste conceito devemos incluir o proletariado digital: os trabalhadores das plataformas, os úberes, os do crowdworking, os empregos do biscate, a economia gig – cada vez mais numerosos e talvez reforçados durante o Corona.[2]
Lourenço e Carla que o digam. Ela já despedida pela empresa: fim do contrato a termo e pronto! Ele em lay-off, com salário reduzido. Claro que os seus amigos estão pior[3]: o Bruno tinha sido contratado pelo Club Med em Albufeira mas, aproveitando o período experimental (mais longo desde há pouco tempo, lembram-se?), já foi despedido; e a Carolina, que trabalhava num armazém de distribuição, já foi dispensada. E a saga continua[4].
Porque tem triunfado a precariedade?
Mas como chegámos a esta realidade? Porque tem sido assim? Vale a pena recuar e perceber onde tem andado o mundo, a economia e a mando de quem.
Até ao fim dos anos 90, viveram-se anos de progressivo reconhecimento dos direitos, dos serviços públicos, da igualdade e distribuição da riqueza, dos sindicatos, do interesse e proteção do bem comum; já desde os anos 70 que havia um enorme esforço para mudar o consenso reinante e reforça-se com os triunfos do neoliberalismo[5] em alguns países. Foi então que em 1989 teve lugar uma iniciativa de FMI, Bº Mundial e FED americano para gerar o Consenso de Washington[6]. Aí definiram prioridades e orientações de politica económica depois aplicadas em todo o mundo. Vêm daí os ataques aos serviços públicos e as privatizações, a abertura ao negócio de setores-chave que lhe estavam interditos, como a saúde, a eletricidade, os correios; vêm daí a liberalização e circulação dos capitais e abolição de barreiras alfandegários e a (ultra)liberalização da economia e das leis do trabalho.
As empresas adotam novos modelos de organização e de negócio, tornam-se pequenas, quase sem trabalhadores e adotam a subcontratação, também como forma de pagar menos e de desarticular a força sindical. Se havia leis e contratos coletivos a cumprir, houve que driblar a situação: outsourcing de serviços e contratos não permanentes e individuais, mesmo para funções permanentes; alteração sucessiva das leis do trabalho, entravando a negociação coletiva (ao mesmo tempo falavam de diálogo social) e o poder negocial dos sindicatos – logo entravando a sua representatividade. É assim, muito daqui, pouco dacolá e mais um pouco logo a seguir que a precariedade se agigantou e é hoje monstruosa nos mercados laborais das economias abertas e desenvolvidas. Portugal é uma delas.
É um triunfo do individualismo, concorrência, competição. Duma cultura anti-sindical. Do capitalismo de casino financeiro.
E os sindicatos?
O progresso havido antes do triunfo neoliberal, muito se deveu à ação sindical, nos locais de trabalho e nos processos de negociação coletiva, como no âmbito do diálogo social (nacional e internacional). A força representativa e a capacidade de propor, negociar e acordar, articulada com a participação institucional, deu resultados positivos, mas a dominante dos últimos anos foi o boicote patronal, com mais discreto ou claro apoio governamental.
Como reagiram os sindicatos? São capaz de eliminar precariedade?
A “revolução” neoliberal mudou a situação radicalmente. Os sindicatos, atacados, perderam sócios, viram reduzido o seu poder negocial, cada vez mais afrontados pelo patronato e governos aliados, com os massmedia ao seu serviço e investindo em comunicação e marketing, alinhados com a cultura do individualismo. Não só os meios dos sindicatos ficaram cada vez mais escassos, como ideologicamente foram perdendo a batalha. Governos e a direita dos interesses, sucessivamente, ostentam uma perigosa arrogância face aos sindicatos e uma displicência face à negociação coletiva e à inspeção do trabalho.
Entretanto os sindicatos[1] bateram-se bem, mas por um regresso ao passado que não regressou mais. Nem as empresas voltaram a ser como dantes, nem os trabalhadores sequer pensavam ou viviam mais como até aí. Os mais jovens, os mais precários, portanto. E os sindicatos perpetuaram dirigentes, muitas vezes rotinados, sem a modernidade necessária na comunicação, sem rotação de mandatos e sem renovação ou rejuvenescimento das direções ou dos delegados sindicais. E num contexto cada vez mais exigente em competências, os sindicalistas nem tempo tiveram para se formar, nem (talvez apetite) para as indispensáveis leituras.
Claro que se bateram e batem contra a precariedade, defendendo os precários e pugnando pela sua integração nos quadros das empresas. Na verdade, sem evidência de sucessos mais do que pontuais. Assim, cerca de 1 em cada 4 trabalhadores é de alguma maneira precário e, perguntados, não veem porque sindicalizar-se, nem descortinam vantagens – como referia Lourenço: “nem nos empregos, nem nos horários, nem nos salários”!
Nos precários temos uma fatia da pobreza[2], são evidência de desigualdades, geram um impacto negativo sobre os direitos individuais e coletivos, prejudicam subjetivamente a negociação coletiva e podem enfraquecer os sindicatos.
Estes, apesar de tudo o que têm conseguido, não têm sido capazes de fazer mudar esta realidade. Apesar disso, recusam-se a colaborar e potenciar a ação de organizações outras do precariado, baseado numa injustificada auto suficiência, por um lado, e no facto de essas associações serem (por vezes, fortemente) críticas do movimento sindical. Os sindicatos têm de combater a precariedade até por uma questão de legitimidade. Mas o poder sindical vem de quê? Vem do sócios, vem duma liderança eficaz e visível , com um trabalho de equipa, vem da democracia interna participativa e das alianças que constrói e anima. Vem também de representar trabalhadores com uma posição estratégica no mercado de
trabalho ou no processo de produção e de negociar (e acordar) em estreita ligação com os representados.
E, já agora, tenha-se em conta que fracos sindicatos ou fraca negociação coletiva é prova de democracia pouco saudável.
E os “novos” sindicatos?
Perante as dificuldades e o contexto político recente, não admira que várias sejam as reações criticas à volta do sindicatos. Para uns, não fazem nada e estão feitos com o Governo; para outros, habituados a ciclos de luta permanente, querem lutas radicais, inoportunas e sem sentido; há os que veem em tudo o comando partidário e outros, talvez com boa vontade, acreditaram que organizações “mais nossas”, da nossa profissão é que são eficazes. Enfim, muitas variantes. Há cerca de 1 ano atrás o grande debate era sobre os novos sindicatos que tinham surgido, sem ligações às centrais sindicais, fantásticos, para uns, desastrosas, para outros, radicais, autocentrados e de duvidosa ética sindical. Sem dúvida, um processo de “multiplicação e redundâncias”[1].
No essencial “foram criadas dois tipos de novos movimentos, os que de facto representam trabalhadores e os que chamamos inorgânicos, não representam trabalhadores, aparecem e desaparecem, mas obedecem a uma estratégia.
Os primeiros não preocupam, a liberdade sindical e de opção determinará a sua capacidade. Os segundos, a começar pelo seu duvidoso financiamento, as suas inconfessáveis estratégias e os exemplos a que poderemos recorrer, ocorridos noutros países, devem-nos preocupar”[2].
Se no segundo caso estamos perante criações artificiais, motivadas por obscuros projetos políticos e manobras congéneres, no primeiro, houve espaço para a criação de tais organizações sindicais. Tal só pode significar que o que existe, na globalidade, não representa, não satisfaz, ou, no mínimo, não se evidencia nem comunica.
É neste contexto que a posição patronal continua ser a de que “mais vale ter trabalho precário do que desemprego… prefiro ter um contrato a termo, com regras e respeito pelo ser humano, do que ter mais um desempregado” disse A. Saraiva, Presidente da CIP[1]. O problema é que a precariedade só por si, pode ter regras, mas não respeita a dignidade da pessoa, como a CIP pretende. Porque, como diz o Papa (ao mesmo tempo que se compromete a acabar com os precários no Vaticano), “o trabalho dá dignidade e a segurança de um trabalho dá dignidade”[2]. Os movimentos da igreja reforçam as preocupações com o precariado: “a LOC orienta-nos para a reflexão e para a ação na atenção aos mais pobres e precários”[3], enquanto o MMTC diz, ” continuar firmes na nossa missão. Através de reflexões, propostas e ações, continuamos no compromisso com os trabalhadores, principalmente com os que têm trabalhos precarios, … na promoção da vida digna e da “vida em abundancia.
Algumas preocupações finais
Os problemas são imensos: mudanças na organização e divisão do trabalho; precarização e segmentação do trabalho; enfraquecimento das solidariedades de classe; garantir mais representação e mais preparação e qualificação dos processos negociais, mais participação, mais incorporação dos novos problemas, do trabalho digital, das plataformas[1], das implicações ambientais e da emergência climática nas reivindicações, mas também da igualdade de género, da redução do horário de trabalho e do desenvolvimento da cooperação e da unidade de ação entre organizações sindicais da CGTP, da UGT ou independentes.
Sou de opinião que há muito que tarda em mudar. O que não depende (só) de nós, não o determinamos, mas há muito que depende só de nós, dos sindicalistas, dos sócios, dos trabalhadores. Importa ter uma visão de futuro (e como é incerto, meu Deus!) e gerar consensos:
- O que vai mudar, no trabalho, na vida, na pessoa?
- O que é preciso mudar e renovar nas práticas e estratégias sindicais, sempre com mais democracia?
- O que é preciso para dar poder sindical aos jovens, aos precários?
- O que é preciso para criar identidade e comunicar com os trabalhadores, na vida de hoje?
- Como vamos reconstruir a solidariedade?
Lourenço, militante da LOC na sua diocese, e Carla, Bruno e Carolina quererão participar e esperam e merecem estas respostas. Precisamos de mostrar como os sindicatos são úteis para cada um e todos eles.
*Membro da Comissão Executiva da CGTP de 1996-1999 e 2008-2012,Ex-Director de Formação no Instituto Sindical Europeu (ETUI), Formador.
Nota: Este artigo, foi inicialmente publicado no último número do «Voz do Trabalho» jornal da Liga Operária Católica/Movimento de Trabalhadores Cristãos e na website deste Movimento.
[1] Nome fictício duma pessoa real [2] Nome também fictício, baseado no real; emprego ficcionado [3] https://www.tsf.pt/portugal/economia/sindicato-acusa-cadeia-aldi-de-abusar-da-precariedade-laboral-e-marca-protestos-11612174.html, mas s situação é fictícia. [4] https://www.facebook.com/172523862835881/posts/2085109684910613/ [5] https://www.dinheirovivo.pt/empresas/aldi-assume-compromissos-com-sindicato-que-desconvoca-protestos/ [6] https://www.despedimentos.pt/2020/04/03/mcdonalds-leiria-despede-funcionarios-no-periodo-experimental-precarios-e-com-contratos-a-prazo/#post; ver também https://www.despedimentos.pt/2020/03/27/mcdonalds-vila-real-fecha-e-manda-funcionarios-para-casa-com-ferias-impostas/#post [7] https://www.pordata.pt/Portugal/Trabalhadores+por+conta+de+outrem+total+e+por+tipo+de+contrato+-844
[8] http://www.precarios.net/, antes designados por Precário Inflexíveis; ver também http://www.precariosdoestado.net/
[9] Vale a pena ler toda esta peça jornalística: https://observador.pt/especiais/afinal-o-que-e-ser-precario/ [10] Por mim assumo uma abordagem multidimensional do trabalho precário: • trabalho precário como emprego incerto, imprevisível e arriscado do ponto de vista do trabalhador ‘(Kallenberg 2009: 2); • salário digno assegurado, de pelo menos 2/3 do salário médio; • subsídio de desemprego • acesso a formação • Outras condições de trabalho e direitos sociais como férias e direitos a benefícios coletivos, horário, completo, e horas extras pagas, reembolso de viagens etc. • ter direitos coletivos e de representação – na linha de B. Kelelr e H. Seifert, conforme: https://www.researchgate.net/publication/271918012_Berndt_Keller_Hartmut_Seifert_2013_Atypische_Beschaftigung_zwischen_Prekaritat_und_Normalitat_Entwicklung_Strukturen_und_Bestimmungsgrunde_im_Uberblick (mediante uso de tradução automática). Vale a pena também ler http://www.estudosdotrabalho.org/texto/gt3/PRECARIEDADE.pdf [11] https://rr.sapo.pt/2020/03/18/economia/coronavirus-ja-esta-a-causar-despedimentos-em-portugal/noticia/185793/ [12] https://www.bloco.org/media/despedimentoscovid.pdf, algo que não encontramos nos sites das centrais sindicais. [13] Para saber mais: https://pt.wikipedia.org/wiki/Neoliberalismo [14] Para saber mais: https://pt.wikipedia.org/wiki/Consenso_de_Washington [15] A generalização é sempre pouco rigorosa, mas creio ser a realidade dominante [16] Como diz o MMTC: http://www.mmtc-infor.com/fr/archivo-2/99-premier-mai-2012-precarite-au-travail-chomage-et-injustice-sociale?highlight=WyJwcmVjYXJpdGUiXQ== [17] Expressão de Dora Fonseca neste interessante e útil artigo: https://www.uc.pt/feuc/ultimo_mes/docs/2019/junho/2019_-_06_- _30_-_Le_Monde_Diplomatique_-_sindicatos_e_outras_questoes.pdf [18] Cf. Fernando Fidalgo, dirigente sindical e sociólogo, num seminário da PRAXIS – reflexão e debate sobre trabalho e sindicalismo, em Novembro 2019. [19] https://observador.pt/2016/03/07/antonio-saraiva-vale-ter-trabalho-precario-do-desemprego/ [20] https://radiocomercial.iol.pt/noticias/74655/papa-apela-para-fim-do-trabalho-precario-no-vaticano[21] Declaração do Porto : http://sites.ecclesia.pt/loc-mtc/declaracao-do-porto-evangelho-no-mundo-do-trabalho/
[22] http://sites.ecclesia.pt/loc-mtc/07-de-outubro-rendimento-basico-universal/ [23] Aconselho vivamente acompanhar este projeto (usar tradutor automático se necessário) Crowd WorkFinding new strategies to organise in Europe: https://crowd-work.eu/, da Uni Nova.