JOSE AFONSO «segundo o meu Evangelho»

António Duarte*

Um dia a minha irmã foi ao médico ORL e à pergunta se ouvia bem, ela respondeu que não sabia como é que ouviam os outros! Também eu falo do Zeca segundo o meu “evangelho”, ou seja, como eu o vi naqueles momentos que com ele estive, não como me contam os outros.

Já lá vai quase meio século e a memória torna-se mais frágil. Estando na fundação do GAC, Grupo de Ação Cultural, idealizado pelo Zé Mário Branco e mais alguns, sempre que íamos para o sul cantar, no regresso passávamos por vezes em Setúbal, numa casa junto à passagem de nível. Era uma festa sempre, todos cantávamos e partilhávamos aqueles momentos. Zeca era uma caixa de música natural, fazia sons, grunhidos, acompanhamentos diversos, para além da sua voz única. Um fenómeno! Tinha na mesa um simples gravador de cassetes para onde cantarolava e assim gravava as suas preciosidades. Os conhecimentos musicais eram escassos, mas a audição musical era um fenómeno. Repare-se na forma como sincronizava as músicas nas letras. Cantei centenas de vezes a Canção de Embalar à minha neta e dizia-me que gostava dessa canção porque falava em dormir. Até as crianças reconheciam o seu grande mérito musical.

Depois de o conhecer trouxe-o a Unhais da Serra e à Covilhã. Com Fausto e um grupo de teatro de Setúbal, lá fomos ao antigo sanatório tocar para os retornados das ex-colónias. Fomos de lá corridos! “Não queremos aqui comunistas” – disse um angolano ali presente! Não houve violência, saímos e pronto. Duas assistentes sociais deram-me dois cadernos de requisições de Ticket Restaurante e foi o que nos valeu para comermos no então restaurante Pintado do nosso amigo João Elias, ali na Rua das Flores, Covilhã. Dormimos na ACM da cidade, que me valeu para as dormidas de cerca de uma dúzia de pessoas. Pela manhã Zélia, mulher do Zeca, foi à minha cama e disse-me que o Zeca não estava bem. Logo passa, disse-lhe e assim foi. Nesse dia em Unhais da Serra foi a vingança. Zeca era o centro das atenções. Com Zélia e Fausto descemos a hoje avenida 1º de Maio e visitámos meu pai Belmiro no seu pequeno espaço comercial. Éramos só nós, ninguém mais nos seguiu. Meu pai contou as suas histórias de vida em volta de um chá e uns biscoitos. Aquele ambiente de Unhais ficou gravado na mente do Zeca.

Uns anos depois trabalhava eu nos serviços municipais da Câmara da Covilhã e chamaram-me ao telefone, já ia a sair do edifício ao final do dia. Era o Zeca num suplicio e já doente, para o ir buscar a Setúbal para ir passar uns dias a Unhais. Tinha casado há pouco tempo e não tinha condições para o receber, nem carro tinha. Com tantos amigos e como ele se lembrou de mim, perguntei-me! Ainda pedi a amigos, mas sem sucesso. Não pude ir buscá-lo. Tenho esse desgosto comigo para sempre.

A sua inteligência era enorme e a sua preocupação com a classe operária era uma constante. Vivia para os outros e que eu saiba, na doença foi um pouco esquecido pelos amigos. Luís Osório narrou esse facto numa das suas crónicas recentes na TSF. Também eram tempos difíceis e muitos como eu naquele momento, tínhamos dificuldades para podermos dar um maior apoio. Isso foi provado na multidão nos dias do seu funeral. Que eu saiba, nunca houve assim um funeral neste país. Foi um funeral festa! Penso que se descuidou um pouco na forma de gerir a sua vida em termos económicos, mas ele era mesmo assim. De qualquer modo muitos se aproveitaram dele a troco de um prato de sopa. Para além de hipocondríaco que todos temos um pouco, era terrivelmente despistado e distraído. Então confiava nos amigos e na família para se orientar. Dizia um cantor espanhol Luís Pastor, numas palavras que andam por aí no You Tube, que se o Zeca fosse inglês teria mais famoso que o Bob Dylan! A sua obra é soberba e deveria ser motivo de estudo nas universidades, pois a sua classe na escrita era de tal maneira inteligente, que muitas letras nem a Pide as conseguia compreender. Cantor de Coimbra, baladeiro, cantor popular e de intervenção, deve ser caso único no mundo. Em abril é todos os anos homenageado em todo o mundo da língua de Camões e não só.

Obrigado, Dr. José Afonso, assim era anunciado nas rádios quando eu era garoto.

*Dirigente Associativo, Animador Sócio-Cultural

 

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