Pedro Estêvão*
É comum dizer-se que a primeira vítima da guerra é a verdade. Entre o “nevoeiro de guerra” e os esforços dos combatentes para justificarem as suas ações e granjearem simpatia pela sua causa, é sempre difícil avaliar a fiabilidade das notícias que nos chegam do terreno.
No entanto, há dois factos sobre a atual guerra na Ucrânia que são consensuais. O primeiro é que a Rússia invadiu a Ucrânia. O segundo é que centenas de milhares de cidadãos ucranianos dirigem-se ou já entraram na União Europeia para fugir à devastação e ao sofrimento da guerra.
O primeiro facto é uma violação grosseira do direito internacional, que tem o governo russo como responsável evidente e que merece a mais viva e inequívoca condenação. O segundo facto é uma tragédia humana que requer medidas urgentes para não se tornar num desastre humanitário.
A resposta ao primeiro facto só pode ser a exigência de cessar-fogo imediato, de retirada das forças militares russas do território ucraniano e de regresso do governo russo à mesa das negociações. A resposta ao segundo facto só pode ser a expressão de solidariedade sem reservas para com o povo ucraniano e a exigência de que os países da União Europeia acolham estes refugiados sem demora e lhes ofereçam as melhores condições possíveis.
Podemos e devemos falar das origens do atual conflito entre Rússia e Ucrânia, das responsabilidades pelo incumprimento dos acordos de Minsk e dos perigos da opção pela expansão da NATO a Leste em vez da garantia de neutralidade dos países limítrofes como forma de lidar com as inseguranças russas. Mas não podemos nunca aceitar que um país recorra à agressão militar para resolver um conflito com outro.
Podemos ter maior ou menor simpatia pelas políticas ou pela origem ideológica do governo de um país. Mas, além da obrigação de evitarmos generalizações abusivas, não podemos nunca aceitar que um país estrangeiro se arrogue o direito de intervir unilateralmente para o substituir.
Podemos e devemos chamar a atenção para o carácter desumano e hipócrita da política de migrações europeia e para os matizes racistas subjacentes à diferença de tratamento entre os refugiados da guerra russo-ucraniana e os que arriscam a vida a atravessar o Mediterrâneo ou a tentam atravessar a fronteira oriental da União Europeia. Mas isso em nada diminui a nossa obrigação moral para com os refugiados ucranianos aqui e agora.
Podemos e devemos alertar para os perigos da escalada do militarismo e para os efeitos devastadores de curto e longo prazo que a guerra gera nas sociedades por ela atingidas. Mas não podemos nunca por em causa o direito de um povo de resistir à ocupação militar do seu território.
Estes princípios não são novos. Fazem parte de uma longa tradição progressista de pacifismo, internacionalismo, humanitarismo e de defesa do direito à autodeterminação dos povos. Foram estes princípios que guiaram gerações de progressistas no apoio às lutas de libertação anticoloniais e que ainda hoje são a base, por exemplo, da condenação da ocupação israelita da Palestina, da ocupação chinesa do Tibete ou da ocupação marroquina do Saara Ocidental. E foram estes princípios que sustentaram a denúncia, entre outras, das intervenções militares ocidentais no Egito em 1956, no Vietname, Laos e Camboja nos anos 60 e 70, em Granada em 1983, na Jugoslávia em 1999 e no Iraque em 2003, das intervenções soviéticas na Alemanha de Leste em 1953, na Hungria em 1956, na Checoslováquia em 1968 e no Afeganistão em 1980 e das intervenções russas na Chechénia nos anos 90 e na Geórgia em 2008.
E estamos a ser fieis a esses princípios em 2022, ao condenarmos sem reservas a invasão da Ucrânia pelo exército russo, ao apelarmos ao cessar-fogo imediato e à retirada das tropas russas do território ucraniano e ao expressarmos a nossa solidariedade com o povo ucraniano. Fazê-lo é assim, ao mesmo tempo, um dever moral e uma posição progressista.
*Coordenador Nacional da BASE-FUT