Pierre Marie*
A atual pandemia de Covid-19 e o confinamento de grande parte da população mundial representa uma situação nunca vista. Na comunicação social florescem textos e depoimentos que apontam para a necessidade de repensar o nosso modelo de desenvolvimento, relocalizar a produção dos bens essenciais (os alimentos mas também máscaras e testes fulcrais para o combate ao coronavírus), salvaguardar o Serviço Nacional de Saúde como um bem fundamental, e finalmente tomarmos medidas para preservar o nosso planeta. O regresso de animais e do silêncio nas nossas cidades exemplifica a necessidade de abrandarmos.
A pandemia mostrou as fragilidades do atual capitalismo neoliberal, fundado na externalização da produção, nos transportes a baixo custo e na exploração dos trabalhadores e do meio ambiente. Revelou sobretudo a necessidade de construir um novo sistema económico e social. As situações de crise propiciam mudanças e criam oportunidades para novos rumos. No entanto, o conteúdo destas mudanças não é certo. Até porque o capitalismo já demonstrou inúmeras vezes que sabia aproveitar “janelas de oportunidades” ou “oportunidades de mercado” para se reinventar e assim sobreviver. Com a revolução digital abriu-se uma nova fase nesta história de reinvenções com o surgimento de um capitalismo de plataforma criando novas relações de trabalho. A Uber representou o paradigma deste capitalismo fundado na insegurança total de trabalhadores tornados “empreendedores” e na desresponsabilização da entidade patronal que se apresenta como mero intermediário entre o produtor e o consumidor de um serviço.
A uberização constitui uma nova face da precariedade e a pandemia de Covid-19 poderá acelerar este processo. Com bilhões de pessoas em casa, as idas e voltas dos estafetas da Uber Eats, da Deliveroo, da Amazon multiplicam-se. A Uber anunciou recentemente a criação de “Uber Drop-Off”, um serviço de entrega de produtos de supermercados e de pequenos comerciantes em casa dos clientes. Algumas semanas antes a Uber Eats já tinha retirado as suas taxas de entrega. Num recente artigo o economista francês Daniel Cohen escrevia que “longe de falar de um colapso do sistema capitalista”, “a atual crise está a acelerar a transição para este mundo desmaterializado” do capitalismo numérico. No Público, o filósofo esloveno Slavoj Žižek foi mais longe ao afirmar que “o resultado mais provável da epidemia é que um novo capitalismo bárbaro prevalecerá”.
Não podemos dar nenhuma previsão por certa. Mas o aumento atual do desemprego e a profunda crise que se avizinha poderão vir a engrossar as fileiras daqueles que irão trabalhar “à peça” para as plataformas do capitalismo digital. Mas tal acontecerá se o sistema capitalista tiver força para impor a destruição dos direitos laborais. As plataformas já estão a espreitar as oportunidades abertas pela crise para expandir os seus negócios. É o dever das organizações de trabalhadores não desperdiçar esta abertura de possíveis para contrapor a este sinistro projeto alternativas coletivas emancipatórias.
*Membro da Comissão Executiva da BASE-FUT e Coordenador da Região Centro