Filomena Vieira*
Foi um dia normal em que se cumpriram as rotinas planeadas, onde o medo permanecia como uma nuvem sobre nós.
De manhã, na vila, dentro do patronato, decorriam na parte da manhã, aulas de costura. À tarde, funcionava o Centro de Obra das Mães, com aulas teóricas, nomeadamente puericultura, economia doméstica e aulas práticas de bordados e culinária e ainda teatro e passeio.
A D. Paula, de bata cinzenta, era a professora de costura. Distribuia tecidos para costurarmos batas infantis para a África. Ensinou-nos ainda, a costurar roupas pessoais. Fazia questão de frizar que a base fundamental do corte eram as medidas.
A D. Mercês, muito amável, gostava de usar blusa vermelha e saia preta. Era a professora do Centro da Obra das Mães. Ficava na Ponta do Sol durante a semana e apanhava o horário (autocarro) ao fim de semana para o Funchal. Era criticada por receber visitas do namorado. Gostávamos tanto dela, que até uma aluna, convidou-a para madrinha da crisma.
Naquela manhã, a professora Mercês apareceu na sala de costura e à parte, entre adultos, sussurravam que tinha acontecido algo em Lisboa.
Continuava-mos receosos e prudentes, com as conversas de cariz político. A experiência era a nossa conselheira.Nem em certo clero carunchoso havia confiança.
A ignorância da população vergava-a ao medo.
Não era naquela sala de costura que queria crescer e aprender mais. Era na do primeiro andar onde ensinavam o primeiro e o segundo ano (segundo ciclo). Ali funcionava a telescola. Mas não houve lugar para mim. Talvez também, possivelmente, não tive quem me empurrasse para ali.
Lembro-me de subir as escadas e espreitar pela janela, a sala da telescola onde aceitava ficar nem que fosse sentada no chão.
A lei não obrigava continuar os estudos após a quarta classe.
As meninas tinham que ficar reféns na família para não perderem a fama, apoiar nas tarefas domésticas onde as famílias eram numerosas e conseguirem casar.
Na aprendizagem na vila, gostava de encontrar o carro verde da Gulbenkian que trazia livros. Era diferente até no cheiro.
Um dos objetos que me acompanhavam na sala de costura era um livro.
Ao contrário de uma colega que se agarrava às fotonovelas, a censura estava na minha cabeça. Era uma leitura pecaminosa.
Com o 25 de abril, encerrou o centro da Obra das Mães, deixaram de nos servir refeições.
O meu pai aceitava que fosse para a costura. Não se pagava.Mas não era o que eu queria.
Valeu a pena andar horas a pé para estudar….
E… sem ele saber, fugi para as aulas dadas nas casas dos elementos do grupo da Lomba da Ponta do Sol, que preparava adultos para exames como alunos externos. Ali tínhamos que estudar o programa todo, pois não podíamos declarar matéria não dada.
Valeu a pena andar horas a pé diariamente e estudar dentro das canas de açúcar. Os exames do segundo ciclo correram bem e continuei o terceiro ciclo da mesma maneira.
Tinha que ir. Foram sete anos a pedir todos os dias à minha mãe, para ir para a escola. Ela teve uma paciência de mãe.
Talvez porque também aprendeu a ler (com a madrinha Josefinha), a cartilha de João de Deus e estudava escondida debaixo da cama. Mais tarde, depois de criar onze filhos, tirou a quarta classe de adultos. Disse que se tivesse companhia (era à noite), ia para o primeiro ano (do segundo ciclo).
Não foi fácil ir para as aulas mesmo depois do 25 de abril.Havia uma condenação social porque aprender com determinados professores era comparado ao comunismo.
Um dia, dificultaram-me a passagem quando ia para as aulas. Chamei a polícia e esta levou- me à escola.Correu a notícia que fui presa.
O 25 de abril, teve o seu epicentro em Lisboa e as ondas primárias e secundárias foram sentidas aos poucos na Madeira.
- Licenciada em Animação Sócio -Cultural pelo Instituto Piaget ,Sindicalista e militante da BASE-FUT