Um grupo de homens vestidos com fardas escuras e passa-montanhas e carregando bastões estão a atacar um grupo de pessoas, batendo-lhes repetidamente nos braços, pernas e costas. Empurram-nos para um rio que marca a fronteira da União Europeia (UE). “Desapareçam!” gritam. “Desapareçam!”.
Isto não se passou na fronteira entre a Bielorrússia e a Polónia, o mais recente ponto crítico migratório na fronteira da UE e aquele que está a dominar as notícias. Aconteceu sim 1500 km mais a sul, na fronteira entre a Croácia e a Bósnia-Herzegovina. E tem vindo a ocorrer há meses, embora com muito menos publicidade ou escrutínio do que os eventos na Bielorrússia.
As fardas vestidas pelos homens de negro na fronteira entre a Croácia e a Bósnia não tinham insígnias. Uma investigação de um consórcio de jornais europeus, estações de televisão e ONG descobriu que se tratava de membros de unidades especiais das polícias croata e grega. A sua missão? Fazer uso da violência para forçar imigrantes sem papéis a saírem da UE.
Capturam imigrantes e abandonam-nos à sua sorte
As operações designam-se como “empurrões”, um eufemismo para expulsões ilegais e violentas. Sucedem-se em toda a fronteira sudeste da UE. Não apenas em terra, mas também no mar. Homens de unidades de elite da polícia marítima da Grécia, também eles vestidos de negro, envergando passa-montanhas e sem insígnias, capturam imigrantes, colocam-nos em botes insufláveis laranjas – fornecidos pela UE – e dirigem-nos para as águas da Turquia ou abandonam-nos à sua sorte.
Para se entender o que está a acontecer na fronteira entre a Bielorrússia e a Polónia, é importante olhar não apenas para a natureza do governo bielorrusso, mas também para o quadro mais vasto das políticas de imigração europeias. A Bielorrússia é um regime brutal e implacável e o seu presidente, Alexander Lukashenko, um torcionário cujas forças de segurança esmagam todos os protestos e torturam e prendem quaisquer opositores. A utilização dos migrantes por Lukashenko para pressionar a UE deixou cerca de 2000 pessoas sem papéis encurraladas na fronteira com a Polónia.
Mas, por mais odiosas que sejam as ações de Lukashenko, o desastre humanitário na fronteira não é o resultado das ações de apenas um país. As forças polacas também encurralaram os migrantes. Varsóvia impôs o estado de emergência, negando aos migrantes comida, água ou ajuda médica e recusando acesso aos jornalistas. Novas leis permitem à polícia ignorar os pedidos de asilo. Oficialmente, oito pessoas morreram em temperaturas abaixo de zero; o número verdadeiro é provavelmente muito mais alto.
Em setembro, no seu discurso do estado da união, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, condenou o governo de Minsk por “instrumentalizar seres humanos”, uma acusação repetida na semana passada pelos delegados europeus e norte-americanos nas Nações Unidas.
UE também instrumentaliza imigrantes
É verdade que Lukashenko está a usar os migrantes como peões numa cínica manobra diplomática. Mas “instrumentalizar seres humanos” é exatamente o que as políticas da EU para as migrações têm feito nas últimas três décadas. A “Fortaleza Europa” tem sido criada transformando pessoas em instrumentos de política, olhando para os migrantes não como seres humanos, mas como destroços a serem varridos das praias e das fronteiras da Europa.
Para manter a Fortaleza Europa, a UE financia uma enorme indústria de rapto e prisão em África, do Atlântico até ao Mar Vermelho e do Mediterrâneo até para lá do Sahara. O “processo de Cartum” é um acordo que a UE criou com países do norte e do leste africanos para deter migrantes antes que estes cheguem ao Mediterrâneo. Entre os estados envolvidos encontram-se a Etiópia, a Eritreia, o Sudão e o Sudão do Sul, todos países a braços com guerras civis e fomes. A UE deu dinheiro a Omar al-Bashir, o antigo líder do Sudão acusado de crimes de guerra pelo Tribunal Penal Internacional, e a Isaias Akwerki, o ditador da Eritreia cuja crueldade ultrapassa a de Lukashenko. A Janjaweed, a milícia responsável pela violência genocida no Darfur, chama-se agora “Forças de Apoio Rápidas” e dedica-se à caça de migrantes para a UE, em vez de rebeldes para Bashir. As políticas europeias transformaram os migrantes num recurso para ser explorado.
Pior ainda é a situação na Líbia, onde a UE financia e treina unidades de polícia marítima, cuja missão é capturar e prender migrantes que fogem em botes. Muitos dos seus membros são milícias reconvertidas para terem acesso ao dinheiro da UE.
O número de migrantes presos na Líbia é impossível de determinar. Numa só semana de outubro, 5 000 foram detidos. Estão todos presos em condições degradantes, sendo muitos sujeitos a tortura, abusos sexuais e extorsão – práticas de que os governos europeus têm pleno conhecimento e das quais são cúmplices.
Há muito que a UE instrumentaliza pessoas, usando a ajuda como arma para aplicar as suas políticas migratórias. Países que concordam em deter qualquer pessoa que pretenda entrar na Europa recebem dinheiro. Os que se recusam a aceitar deportados perdem acesso ao financiamento. O Níger tornou-se no maior destinatário per capita de ajuda não por ser o país mais pobre do mundo, mas porque é o “laboratório da Europa para as migrações”, onde as políticas internas são definidas pelos objetivos da UE para as migrações. O resultado tem sido uma economia distorcida, o florescimento de grupos armados e a introdução de controlos de fronteiras para os cidadãos no seu próprio país – porque a Europa assim o exige.
Imigrantes sem papéis são tratados como criminosos
Entretanto, na Europa, migrantes sem papéis são tratados como perigosos criminosos, quando não como assassinos em massa. Na semana passada, na Grécia, começou o julgamento de dois sobreviventes de um bote que se virou no Mar Egeu. Ambos faziam parte de um grupo de 24 pessoas que fugiam do Afeganistão. Um deles, N., perdeu o seu filho de seis anos no naufrágio. O outro, Hasan, ajudou a dirigir o barco numa tentativa desesperada para o salvar. N. é agora acusado de “colocar em risco a vida do seu filho” e arrisca 10 anos de prisão. Hasan pode ser preso por 230 anos por “transportar 24 pessoas para o território grego”. Já este ano, outro migrante foi condenado a uma pena de 142 anos em circunstâncias similares.
Estes não são julgamentos para aplicar justiça. Têm apenas como fim enviar uma mensagem: “isto é o que vos acontecerá se vierem para a Europa”. Tal qual como Lukashenko, a UE usa pessoas como instrumentos em nome de uma política cruel.
De bandidos vestidos com passa-montanhas a baterem em pessoas até julgamentos fantoche feitos para inspirar o medo, as políticas migratórias da Europa poderiam receber um olhar de admiração de Lukashenko. O ditador da Bielorrússia é um tirano cruel, cujas ações são detestáveis. Todavia, não podemos admitir que a UE use essas ações para branquear as suas políticas, que são igualmente cínicas e igualmente brutais.
Autor: Kenan Malik
Fonte: The Guardian, 14 de novembro de 2021
Tradução: Pedro Estêvão