Há que compreender a rápida subida da direita populista e radical em Portugal

Ulisses Garrido*, conhecido sindicalista português, reflete neste artigo sobre as eleições legislativas, o contexto político económico das mesmas, a comunicação social ,os governos do PS…Para o Ulisses este texto «Mais do que uma tomada de posição pessoal, trata-se de um conjunto de elementos de análise suscetíveis de fazer pensar e de interrogar para a fase seguinte: o que fazer.» E desafia-nos:« podem mesmo enriquecer o conteúdo com os vossos comentários e opiniões.»

 

«As recentes eleições legislativas em Portugal revelaram uma mudança significativa no panorama político, com a notável ascensão da direita populista e radical. Mas como chegou a sociedade portuguesa a este ponto? Como puderam os partidos de esquerda perder tanto eleitorado? E, em particular, a queda de mais de um milhão de votos do Partido Socialista (PS) em um curto espaço de tempo, como se explica?

Não há uma única resposta para essa complexa questão, mas sim uma confluência de fatores.

 

Desencanto com a política tradicional e crise de confiança

A insatisfação com os partidos políticos tradicionais, tanto à esquerda como à direita, é um fator crucial. Muitos eleitores não veem as suas preocupações abordadas, os seus problemas resolvidos. Tal gera um sentimento de desilusão e a procura por alternativas.

Casos de corrupção, má gestão e promessas não cumpridas têm aumentado a desconfiança nas instituições democráticas e nos seus representantes.

Há uma perceção de que os partidos estão mais preocupados com os seus próprios interesses do que com os dos cidadãos.

 

As policrises

Portugal e muitos outros países europeus enfrentam desafios económicos e sociais significativos. A inflação, o aumento do custo de vida, a crise da habitação, a precariedade laboral e as dificuldades nos serviços públicos (saúde, educação e justiça, por exemplo) criam um ambiente de insegurança e frustração.

A crise dos custos de vida e inflação,  com o aumento galopante do custo de vida, impulsionado pela inflação, tem um impacto direto e imediato no rendimento disponível das famílias. A dificuldade em chegar ao fim do mês, pagar contas e ter uma vida digna gera um ambiente de ansiedade e revolta.

A crise da habitação com a escalada dos preços das casas e das rendas, tornando a habitação inacessível para grande parte da população, é um dos problemas mais agudos e visíveis. Ao mesmo tempo, os alugueres de curta duração, tipo BNB, cresceram sem medida e a construção de luxo para venda a estrangeiros não cessa. A desesperança de não conseguir ter uma casa decente, ou de viver à beira da exclusão habitacional, é um fator poderoso de descontentamento.

A crise da precariedade laboral, dos baixos salários e falta de perspetivas de progressão, apesar de algum crescimento económico, é a realidade de muitos trabalhadores. Mais de 20% dos jovens tem qualificações mais elevadas de que as funções que exercem exigem e, são 30% de sobre qualificados se considerarmos os jovens, até 34 anos, com formação superior. Não se reduz o número dos que partem para o estrangeiro e os que não vão, em geral, desejam partir. Este cenário alimenta a sensação de exploração e injustiça.

A crise dos serviços públicos essenciais em contínua deterioração. O SNS e a escola pública enfrentam graves problemas de financiamento, falta de profissionais e condições precárias. As longas listas de espera, a dificuldade de acesso a cuidados de saúde e a degradação da qualidade do ensino geram indignação e frustração generalizadas. Nestes momentos, os discursos que prometem “soluções rápidas” encontram terreno fértil.

As mensagens simplistas e as soluções radicais propostas pelos populistas são atraentes para quem se sente desamparado e sem perspetivas. O discurso de “anti-sistema” cativa quem acredita que o sistema falhou.

 

Frustração com a imigração e a segurança

Embora Portugal tenha uma tradição de acolhimento, o aumento dos fluxos migratórios nos últimos anos, juntamente com problemas na integração e uma perceção de aumento da insegurança, tornaram-se temas sensíveis. Partidos populistas exploram essas preocupações, utilizando linguagem xenófoba e racista, mas que encontra eco em setores da população que se sentem ameaçados ou maltratados. Vejamos:

O aumento dos fluxos migratórios trouxe desafios de integração, especialmente em grandes centros urbanos. A pressão sobre os serviços públicos e a perceção de uma mudança demográfica rápida são exploradas por discursos populistas.

A perceção do aumento da insegurança, em contradição com os dados estatísticos, amplificada por discursos parlamentares, por incidentes noticiados e pela disseminação de informação nas redes sociais, leva a uma procura por políticas de “lei e ordem”.

A exploração da frustração social  e os problemas económicos e sociais são habilmente ligados pela direita populista à imigração, utilizando-a como bode expiatório. Prometem “controlar as fronteiras”, “pôr a ordem” e “proteger o que é nosso” e assim tocam setores da população que se sentem ameaçados ou que encontram explicações simplistas para problemas complexos. O discurso de ódio, racista e xenófobo encontra assim terreno para se normalizar e amplificar.

 

Discurso de ódio e redes sociais

A proliferação de discursos de ódio, amplificados pelas redes sociais, contribui para a divisão da sociedade. A facilidade com que informação falsa e campanhas de desinformação se espalham online permite que as narrativas da extrema direita ganhe influência.

Os movimentos populistas exploram ainda a saturação de uma parte da população com o que consideram ser o “politicamente correto“, usando um discurso frontal e “sem papas na língua”, que é percebido como autêntico e corajoso por alguns eleitores.

 

As redes sociais transformaram radicalmente a forma como a informação é consumida e como o debate público se processa:

  • Câmaras de eco e bolhas de filtro: As redes sociais criam “câmaras de eco” e “bolhas de filtro” onde os utilizadores são expostos predominantemente a informações e opiniões que confirmam as suas próprias crenças. Isto dificulta o pensamento crítico, promove a radicalização e marginaliza as vozes divergentes.
  • Disseminação de desinformação e notícias falsas: A velocidade com que a desinformação e as notícias falsas se espalham online é alarmante. Estas narrativas, emocionais e sem base real, são particularmente eficazes na manipulação da opinião pública e na difusão de preconceitos.
  • Normalização do discurso de ódio: A falta de moderação eficaz (tal como o comportamento do partido Chega no Parlamento) permitiu que o discurso de ódio, racista, sexista e mal-educado se tornasse visível e O anonimato e a distância da interação online reduzem as inibições, e o que antes seria considerado inaceitável em público torna-se comum nas redes, acabando por transbordar para o debate político.

 

Falhas estratégicas da esquerda

A perda de eleitorado da esquerda, e em particular do PS, só pode ser atribuída a uma combinação de fatores internos e externos:

  • Desgaste governamental: O PS esteve no governo por um período considerável, e o desgaste natural associado à governação, especialmente em tempos de crise, tende a penalizar os partidos no poder. Mas a incapacidade de resolver problemas estruturais, a sistemática prioridade a reduzir o deficit (com as pessoas em segundo lugar), o bloqueio às negociações com médicos, enfermeiros, professores, forças de segurança, funcionários judiciais, todos os servidores públicos, a falta de resposta na habitação (mantendo a lei da troika e dando espaço ao aluguer de curta duração) , e a perceção de que não houve melhorias significativas na vida dos cidadãos – mesmo com a maioria absoluta, que foi desastrosa – foram essenciais para o descontentamento. A economia estava bem, com excelentes indicadores, mas a vida das pessoas não.
  • O fim oportunista da geringonça: a unidade das esquerdas num governo com considerável grau de aceitação, rompida pelo PS teve um preço político no apoio e nas crenças populares.
  • Perda de ligação com o eleitorado tradicional: Muitos eleitores, que tradicionalmente votavam à esquerda, sentem que os partidos se afastaram das suas bases, priorizando agendas que não têm a ver com as suas preocupações quotidianas. A linguagem e as propostas dos partidos de esquerda (como as dos sindicatos) perderam atratividade e são menos apelativas para o eleitorado trabalhador e das classes mais baixas, que se sente esquecido.
  • Ausência de alternativas fortes e coerentes: A fragmentação e, por vezes, a falta de uma alternativa de esquerda coesa e com um projeto claro, credível, terão levado eleitores descontentes a procurar opções fora do tradicional. Além disso, houve redução da abstenção (desiludidos voltaram a votar, agora contra o sistema).
  • Discurso insuficiente face ao populismo: As esquerdas têm tido dificuldade em comunicar de forma eficaz respondendo às preocupações mais imediatas e emocionais dos cidadãos, que são exploradas pelo populismo. Um discurso assente em análises complexas ou propostas de longo prazo não é tão eficaz como a retórica direta e simplista dos populistas em momentos de frustração. A incapacidade de contrapor eficazmente à narrativa populista sobre imigração e segurança, por exemplo, deixou um espaço livre para a extrema-direita.
  • Abstenção e desmobilização: A desilusão generalizada com a política pode ter levado a um aumento da abstenção, especialmente entre eleitores que antes votavam à esquerda, mas que agora se sentem desmotivados a participar. Ao mesmo tempo, abstencionistas tradicionais voltaram a votar agora anti sistema.

A ascensão da direita populista e radical em Portugal, e a concomitante perda de eleitorado por parte da esquerda, são reflexo de um descontentamento profundo e multifacetado. Não se trata apenas de uma questão ideológica, mas de um sintoma de frustrações económicas, sociais e políticas que encontraram no discurso populista uma forma de expressão.

 

O papel dos movimentos sociais e sindicatos

A desmobilização ou a ineficácia dos movimentos sociais e sindicatos também pode ter contribuído para o cenário atual.

Por um lado, os sindicatos têm perdido força e representatividade . O seu poder para mobilizar e influenciar a agenda política tem diminuído, deixando um vazio (que a extrema direita promete ocupar).

Por outro lado, os sindicatos estão divididos, desunidos e nem sequer tentam coordenar-se.

Além disso , os movimentos sociais, tradicionalmente pouco fortes, embora ativos em diversas frentes (habitação, clima, saúde), surgem fragmentados e incapazes de  se coordenarem para obter impacto político.

Refira-se ainda que as formas tradicionais de protesto e mobilização estão a perder eficácia, não conseguindo captar a atenção ou o apoio de um eleitorado mais desiludido e que procura respostas rápidas. Há um efetivo desgaste da formal de luta tradicional, em que as organizações insistem. Esta lacuna tem sido  preenchida por discursos radicais que prometem “mudar tudo”.

 

O impacto da comunicação social, especialmente as televisões

A comunicação social, e em particular as televisões – canais populares sempre sintonizados em cafés e bares, em coletividades e lojas, por todo o pais -, desempenharam um papel essencial na formação da opinião pública e, logo, nos resultados eleitorais.

Mas o que as caracteriza?

  • Prioridade ao espetáculo e ao conflito: na luta por audiências, privilegiam o espetáculo, o conflito e a polarização. Este formato oferece um palco privilegiado a discursos radicais e provocadores, que geram mais atenção do que as análises complexas ou os debates aprofundados. O próprio canal generalista publico (universo RTP) acaba por se aproximar deste formato para não perder audiência.
  • Tempo de antena desproporcional: políticos com discursos populistas e extremistas receberam um tempo de antena desproporcional à sua representatividade inicial, o que lhes confere legitimidade e visibilidade. A controvérsia gerada por estes discursos é frequentemente confundida com relevância noticiosa. O acompanhamento da ida ao hopital do líder do Partido Chega é disso o mais descarado exemplo.
    • Do relatório do OBERCOM, relat´´orio do Observatório da Comunicação: Os dados recolhidos indicam que o partido Chega e André Ventura são os atores políticos que conseguem um melhor desempenho em captar a atenção dos utilizadores de redes sociais. O X é a rede de eleição para discussão de temas políticos e eleitorais entre os cidadãos, mas o Facebook é aquela que proporciona mais interações e visualizações aos conteúdos dos partidos e candidatos, havendo um crescimento notório do TikTok.
    • O relatório conclui que o tema da imigração se tornou central na discussão política em Portugal, tendo superado largamente o tema da corrupção, que tinha sido central em atos eleitorais anteriores. Entre 2024 e 2025 aumentou em mais de 200% o número de publicações sobre imigração no Facebook em Portugal. Em resultado disso, grande parte dos episódios de desinformação detectados inscrevem-se nas narrativas de que “Portugal está a ser invadido” e de que existe um processo de “islamização” em curso no nosso país.
  • Normalização do discurso radical: A exposição constante a discursos de ódio, racistas ou mal-educados, mesmo que seja para os condenar, acaba por os normalizar. O que antes era chocante e marginal, torna-se familiar e, para alguns, até aceitável.
  • Foco nos problemas sem soluções: A cobertura noticiosa foca-se nos problemas sem aprofundar as causas ou as possíveis soluções, o que reforça o sentimento de desesperança – e os partidos das esquerdas e os sindicatos têm responsabilidades nisso. As queixas e as denúncias são privilegiadas, mas uma visão positiva do futuro é negligenciada, abrindo espaço para quem oferece “soluções” rápidas, ainda que irrealistas.
  • Disseminação de desinformação e notícias falsas: Embora não seja exclusiva das televisões, a rapidez com que a desinformação pode ser veiculada e amplificada pelos meios de comunicação tradicionais, por vezes sem a devida verificação, contribui para a confusão e a polarização.

 

A responsabilidade da experiência governamental do PS de António Costa

A experiência de governação do Partido Socialista, especialmente no período da maioria absoluta, é um fator crucial para entender a sua queda abrupta. O próprio Partido, por um lado anunciou a necessidade de reflexão interna, mas por outro avançou sem demora nem debate para a escolha do novo SG.

Vejamos pois:

O desgaste da maioria absoluta: Conquistar uma maioria absoluta, surpreendente e inesperada, é, por um lado, uma demonstração de força, mas por outro, pode levar a um desgaste acelerado. A expectativa de que todos os problemas seriam resolvidos rapidamente e a perceção de que o governo poderia fazer “o que quisesse” sem escrutínio, aumentou a frustração quando realomente as melhorias não aconteceram nem foram sentidas por todos.

Mas o governo focou-se em grandes projetos e números macroeconómicos, em reduzir o deficit, sem resolver os problemas do dia-a-dia da maioria da população. Foi “governar para os elefantes”. Na verdade no governo da “geringonça”, com as esquerdas, o PS reverteu algumas medidas da troika, mas deixou muitas que ainda hoje subsistem. A falta de resposta eficaz à crise na habitação, a degradação do SNS e os baixos salários geraram um sentimento de abandono nas classes trabalhadoras e médias.

Apesar de um início de governação marcado pela estabilidade e pela “Geringonça”, a fase da maioria absoluta foi crescentemente marcada por sucessivos “casos e casinhos” envolvendo membros do governo e da esfera política. Estas situações associadas a suspeitas de favoritismo ou má gestão – num caso até de roubo de computadores no gabinete ministerial e violência entre os membros dum gabinete – destruíram a imagem de integridade e competência do Governo e do 1º Ministro e acrescentaram ceticismo em relação à classe política em geral.

A perceção de arrogância sistemática por parte do governo, e a dificuldade em reconhecer erros ou em dialogar abertamente com a oposição e os parceiros sociais – escolheu sempre a via do confronto com importantes setores de trabalhadores -, contribuíram para a sua impopularidade. A falta de autocrítica perante os problemas reais sentidos pela população criou um fosso.

Acresce ainda a gestão da crise inflacionista: embora a inflação seja um fenómeno global, a perceção de que o governo não tomou medidas suficientemente eficazes para proteger os rendimentos das famílias e o seu poder de compra, terá penalizado fortemente o PS.

Após anos de governação, o PS pareceu perder a capacidade inspirar esperança e oferecer soluções concretas para os desafios estruturais do país. A falta de um projeto mobilizador para o futuro, uma visão clara e a dificuldade em ir além da gestão corrente contribuíram para o desinteresse e a desilusão. O SG pós Costa (que entretanto não conseguiu desvanecer a ideia de que “jogou a seu favor”, ao demitir-se, para vir a ocupar um lugar europeu) e a campanha eleitoral de 2025, ofereceu um PS entre o que se dizia mais à esquerda e uma proposta difusa e de cedências incaracterísticas. Tal, em nada ajudou.

 

E agora?

A ascensão da direita populista e radical em Portugal, e a dramática perda de eleitorado por parte da esquerda, são o culminar de um profundo descontentamento social, económico e político.

Não se trata de um fenómeno isolado, mas de um sintoma de tensões e frustrações acumuladas que encontraram no discurso populista uma forma de expressão e nas “soluções simples” para problemas complexos, um apoio significativo. A crise de confiança nas instituições e nos políticos, a perceção de ineficácia dos governos e o discurso desequilibrado sempre a favor das empresas (e nestas percebe-se quem ganha: as grandes empresas), as dificuldades económicas e sociais, a exploração de medos em relação à imigração e segurança, e o ambiente polarizado das redes sociais, criaram um terreno fértil para a emergência e consolidação destas forças. Mais, com esta radicalização as forças de direita moderada tornaram-se mais à direita, aproximaram-se do discurso radical, propõem e decidem políticas que nunca antes assumiriam.

Para os partidos de esquerda, este resultado é um alerta sério. Exige uma profunda reflexão sobre a sua capacidade de se voltarem a concentrar nas preocupações quotidianas dos cidadãos, de apresentarem projetos coerentes e de combaterem eficazmente as narrativas simplistas e divisionistas que ganham terreno. Caso contrário, arriscam-se a uma marginalização crescente e a uma perda ainda maior da sua relevância política. O que nem seria inédito: há casos exemplares por essa Europa fora.»

  • Sindicalista, Formador, Ativista Social e Sociólogo

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