«Esta reflexão do Papa Francisco foi a que mais me tocou…»

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José Ricardo*

Devo confessar que esta reflexão do Papa Francisco foi a que mais me tocou desde os tempos da juventude, quando li a encíclica Populorum Progressio. Dar-vos-ei conta dos ecos que teve em mim.

Pode acontecer que os poderosos e privilegiados das várias igrejas, descendentes das Cruzadas, da Santa Inquisição ou das colonizações evangelizadoras do Novo Mundo, vão assobiar para o lado, deixar passar a onda de choque que ela irá provocar, para depois tudo ficar como dantes. Mas esta mensagem vem dar ânimo àqueles e aquelas que no Brasil e em tantos países lutam contra a opressão e retirar aos poderosos deste mundo a tranquilidade de consciência do “bem maior” com que justificam os seus atos.

O seres humanos, como todos os seres, brotam da Terra e a ela regressam. Nascem de Deus e a ele regressam. E durante a sua existência os seres humanos gozam do livre arbítrio. Tanto podem respeitar o Deus de ondem vêm e para onde vão, amando a natureza e aqueles que os acompanham no caminho, como podem pecar e infringir todos os males a si, aos seus semelhantes e ao planeta. Como defende Leonardo Boff a natureza deve ser entendida como sujeito e não objeto, pois, a natureza e a humanidade estão no mesmo plano e são criação e imagem de Deus. Combater, desfazer, desconstruir esta alienação de separar Deus das coisas são os alicerces de uma Boa Nova.

Como Francisco nos diz: “Cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos. Mas precisamos de nos constituir como um «nós» que habita a casa comum. Um tal cuidado não interessa aos poderes económicos que necessitam dum ganho rápido.”

O êxtase deste amor aos seus semelhantes está incorporado no desafio da mensagem de Jesus Cristo: amar os nossos inimigos. Chegados aqui todos nos sentimos pequenos para alcançar esta missão. Talvez por isso me parece que esta carta se dirige sobretudo para dentro da Igreja e não apenas para a humanidade em geral.

A igreja continua nas mesmas encruzilhadas: outrora, enquanto Francisco de Assis pregava o amor, as cruzadas, movidas pelos proclamados povos cristãos, eram abençoadas pelos Papas para conquistar a Terra Santa, matando os Serracenos e infiéis. Na atualidade, enquanto o Papa Francisco prega a fraternidade e amizade social, os países ditos cristãos invadem os países infiéis, com justificações de mentira e propósitos manipuladores como o de irem resgatar os povos para a liberdade e democracia. Mesmo depois das mentiras desmascaradas, as igrejas desses países, ditos cristãos, são coniventes e silenciosas.

Aos domingos, nas nossas igrejas, continua-se a ensinar papagaios, repetindo os rituais, sem qualquer adesão aos problemas que as comunidades vivem. Nestas cerimónias, a que chamam missas, só o pastor tem direito à verdade da palavra, utilizando o que foi escrito há mais de dois mil anos, onde o misticismo se sobrepõe à realidade, sem enquadramento histórico do contexto da época. Ora, como refere o Papa Francisco “A pobreza sempre se analisa e compreende no contexto das possibilidades reais dum momento histórico concreto.”

Luta pelo bem comum tem de ser permanente

Uma ideia que nos interpela à ação é que a participação na luta pelo bem comum tem de ser permanente. Como afirma o irmão Francisco: “ O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia.”

Também Paulo Freire dizia que a liberdade não é uma doação mas é uma conquista. Não são os poderosos do poder económico que dão o que é devido a quem trabalha. São os oprimidos que se libertam. Agora Francisco vem acrescentar que esses valores têm que ser praticados e conquistados em cada dia.

Nesta primeira abordagem à carta do Papa partilho uma preocupação que é permanente na nossa reflexão: a dominação cultural pela manipulação dos conceitos.

Todos nós temos memória da acusação “isso é ideologia!” dos comentadores e políticos do sistema capitalista quando alguém critica o sistema instituído, como se este sistema não fosse ele próprio uma ideologia. Todos nos recordamos da acusação de Trump sobre o candidato democrata Bernie Sanders acusando-o de “socialista” por defender propostas mais coletivas pelo bem comum, como se isso fosse uma injúria. Como sustenta Francisco “Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único.”

Esta cultura que só aceita manifestações que reproduzam o sistema estabelecido é matraqueada pelos mass média, controlados pelo poder financeiro, que paga aos ideólogos da manipulação discursiva. Como escreve Francisco “ Uma maneira eficaz de dissolver a consciência histórica, o pensamento crítico, o empenho pela justiça e os percursos de integração é esvaziar de sentido ou manipular as «grandes» palavras.”

Novas formas de colonização cultural

Como li em Rosana Barros, ao referir que a linguagem sobre os conceitos pode “servir fins de manipulação discursiva”,  defende que “…esta metamorfose discursiva consegue esvaziá-los da crítica e reduzi-los no novo conteúdo a algo que possa ser considerado consensual, e que permita, portanto, a prossecução de políticas e práticas que não colidam com os interesses dominantes.

Esta manipulação destina-se a esvaziar as palavras de conteúdo histórico e transformá-las apenas em bens de consumo sem significado. Como diz o Papa “São as novas formas de colonização cultural”. E acrescenta: “desta forma, a política deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem comum, limitando-se a receitas efémeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro”.

Outra questão abordada é a dominação financeira e cultural que são a cara e a coroa do pensamento único que dá cobertura cultural ao domínio dos mercados. Este domínio, por falta de resposta coerente das forças políticas, abre espaço para falsas alternativas nacionalistas e máfias. Há muitos camaradas que defendem que a dominação financeira se faz através da comissão europeia e defendem uma política nacionalista. É verdade que o poder financeiro subjuga e condiciona as políticas da EU. Mas sem estruturas democráticas, com escala suficiente para condicionar e impor algumas regras, seria muito pior.

Para podermos ter Esperança é necessário desconstruir as teias da opressão. Termino esta partilha com um sentimento que me une ao Papa Francisco “Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência”.

11/10/2020

*Mestre em Ciências da Educação,Animador social e Dirigente da BASE-FUT

 

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