José Vaz*
“Cruzei-me” várias vezes com o escritor Bernardo Santareno e o “encontro” com este célebre escritor, natural de Santarém, deu-se através de algumas das suas obras dramatúrgicas.
A primeira vez foi em 1961/2, quando entrevistei para o jornal “Juventude Operária” um ator operário que interpretou com elevado nível o papel de “Albino Marreco” na sua peça, “O Lugre”, em Concurso Nacional de Teatro, ganhando com aquela interpretação o 1.º Prémio. O filme “Terra Nova”, atualmente em exibição na RTP, é uma adaptação daquela obra.
A “segunda” vez, foi em 14 de outubro de 1964 e resultou de uma circunstância fortuita e trágica.Na altura era dirigente livre da JOC e o meu amigo Saúl Fernandes, de Lourosa, pediu a minha comparência no local porque estavam perturbados e consternados com a morte de duas jovens mulheres no “Cerco de Lourosa”.
«A traição do Padre Martinho»
Este “Cerco”, protagonizado pela GNR a mando de António Oliveira Salazar, aconteceu na sequência do afastamento do jovem padre Damião, muito querido na paróquia.Lamentavelmente, neste afastamento existiu uma aquiescência, algo cobarde, do Administrador Apostólico, D. Florentino Andrade e Silva, após o afastamento do Bispo D. António Ferreira Gomes.
Foram estes acontecimentos que inspiraram Bernardo Santareno a escrever a sua peça “A Traição do Padre Martinho” que o grupo popular de teatro da minha erra teve em cena durante quatro anos consecutivos.
Outros “encontros” com o autor foram através do visionamento, também em Avintes, das suas peças teatrais: “O Crime da Aldeia Velha”. “O Judeu” e a “Promessa”.
Para este artigo, pela extensão da obra do autor e pela minha sensibilidade, seleciono as narrativas, as realidades e as mundividências dos homens do mar na saga da pesca do bacalhau, nos idos dos anos 50 do século XX.
Pela sua profissão de médico psiquiatra, António Martinho do Rosário (1920 -1980), nome de pia batismal, o escritor Bernardo Santareno esteve confinado durante 12 meses nos mares da Terra Nova e da Gronelândia e contactou, em grande proximidade, com os homens do mar, conhecendo a sua cultura, a sua linguagem, sentindo seus dramas e problemas e conhecendo a sua visão do mundo.
«Nos mares do fim do mundo»
De todas as suas obras de Bernardo Santareno, escolhi as crónicas: “Nos mares do fim do mundo”, de 1997, que poderão ser lidas em PDF no Google (cvc.instituto-camoes.pt?)
Estas crónicas publicadas no âmbito da Expo 98, o autor descreve um conjunto de histórias vivenciadas por si durante a sua experiência de “confinação” no lugre “Gil Eanes”.
A primeira crónica é a das peias do balanço onde o Zé Claro, da Serra da Estrela que, por nunca ter visto o mar, quis embarcar na pesca do bacalhau e a quem os pescadores mais velhos gozavam, fazendo com que carregasse ás costas um saco com tijolos para provocar o equilíbrio e contrariar a ondulação do mar. Pela experiência, pela monotonia e pela fria e inóspita paisagem dos mares do Norte, Zé Claro, acaba por sentir saudades da sua Serra da Estrela, tocando uma flauta de cana que ele próprio construiu.
A crónica seguinte, Antigamente, é uma descrição das antigas condições de vida dos pescadores de bacalhau que ao mais pequeno corte ou panarício lhe amputavam um dedo; a tirania e a maldade de um capitão de Ílhavo “ uma peste, uma praga de Deus” aquilo na era home, era o próprio Diabo!” que por pequenos delitos, metia as pessoas num frigorifico a ponto de quase morrerem congelados. Nesta história é relatada a rebelião que os pescadores fizeram a esse malvado capitão, mas este, de tão destemido e mau, acabou por reverter a situação, desgraçando todos aqueles que o contestaram.
A terceira crónica é a do Bobo, velho, feio e corcunda pescador, que todos gozavam, “malhavam”, agrediam e achincalhavam a sua dignidade. Fraco e desesperado, vai remoendo vinganças, sobretudo contra o cozinheiro de bordo e seu ajudante. Uma noite, encharcado e desamarrado pelo vinho, mata os dois à facada. Depois deste trágico desfecho, Albino Marreco gemendo, lamentando e recordando “Ai mê filhinho…ai mê filhinho!” – serenamente suicida-se, atirando-se ao mar. Foi nesta história que Bernardo Santareno se inspirou para desenhar a personagem do Albino Marreco na peça de teatro “O Lugre” e agora inspirou o filme “Terra Nova” em exibição na RTP.
O Ciclone é a crónica seguinte e o autor descreve uma pavorosa tempestade nos mares do Norte e os comportamentos desesperados dos pescadores perante o ímpeto clamoroso da deusa “Fúria” e as fragilidades humanas diante da antecâmara de uma morte anunciada.
Segue-se o Funeral marítimo onde, por morte súbita, um pescador morre a bordo em alto mar e, segundo a lei e as normas, o corpo deveria de ser lançado ao mar. Mas, na hora de empurrar o corpo borda fora, todos os pescadores se acanham, tímidos e temerosos. Só o Chico de Alcântara, talvez sobranceiro e trocista dos companheiros, ousou fazer aquele gesto de caridade e de misericórdia para com o pescador morto. Só que, depois daquele ato, por razões desconhecidas, o Chico de Alcântara adoeceu grave e misteriosamente, dizendo os companheiros que fora castigo do mar. Acabou por se estabelecer em terra, prosperou e disseram os companheiros que o mar se tinha vingado e o “botado fora”.
Segue-se um texto belíssimo sobre o iceberg Frederikshaabs que termina de uma forma lapidar: “paisagem que Deus criou quando pensou a humana virtude da pureza.”
Os fantasmas da Gronelândia é cronica seguinte e conta a história do Ti Rufino, velho pescador, que repetindo lendas antigas, convence os outros pescadores a recusarem-se a ir pescar para as águas tenebrosas da Gronelândia porque este sítio está infestado por terríveis fantasmas. O capitão Cajeira, do veleiro “Rio Lima”, de forma enérgica e violenta tenta desfazer essas poderosas lendas e obriga os pescadores a irem pescar para essas águas, o que se salda por uma enorme colheita de bacalhaus.
A penúltima crónica, O Lobisomem. Grande parte dos pescadores embarcados eram oriundos das aldeias portuguesas onde a tradição dos espíritos, das bruxas, dos diabos, das feiticeiras e dos lobisomens faziam parte do folclore imemorial dos povos e emigraram para bordo. Esta crónica narra a história de um marinheiro que se transformava em lobisomem e a peripécia para desarmar a sua suposta perigosidade e influência na pescaria.
A última crónica desta obra de Bernardo Santareno é dedicada às mulheres dos pescadores do bacalhau e intitula-se: As mulheres dos mais “rijos navegadores do mundo”. Apartados da família por longos meses, o pescador vive intensamente as preocupações dos seus filhos e das suas mulheres que: “cavam, semeiam, ceifam e colhem”.
Em toda a sua obra, Bernardo Santareno reivindica o direito à diferença e o respeito pela liberdade e dignidade do homem face a todas as formas de opressão e comtempla problemas de religiosidade, superstição, misticismo e erotismo.
Obras de Bernardo Santareno:
A Promessa, O Bailarino, A Excomungada (1957), O Lugre e O Crime da Aldeia Velha (1959), Antônio Marinheiro, Os Anjos e o Sangue, O Duelo, O Pecado de João Agonia (1961), Anunciação (1962), O Judeu (1966), O Inferno (1967), A Traição do Padre Martinho (1969),Português, Escritor, 45 anos de Idade (1974).
Ainda em 1974, o dramaturgo produziu três quadros para o teatro de revista: Os vendedores de esperança, A guerra santa e o milagre das lágrimas.
Depois, Os Marginais e a Revolução (1979), volume composto por Restos, A Confissão, Monsanto e Vida Breve em Três fotografias.
O Punho (1
*Escritor, historiador e ex-sindicalista