Manuela Silva*
Para um Serviço Nacional de Saúde mais robusto e que responda às necessidades das pessoas é necessário: o aumento do financiamento público, o desenvolvimento organizacional do SNS, a implementação de uma política de recursos humanos e a separação entre o público e o privado.
A presente pandemia teve um grande impacto no bem-estar e na saúde das pessoas e colocou muitos desafios e inquietações ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). Globalmente, o SNS tem conseguido responder à pandemia, através da reorganização dos cuidados de saúde primários e de saúde pública, da campanha de vacinação e da adaptação da atividade hospitalar. No entanto, a pandemia revelou insuficiências do Serviço Nacional de Saúde, algumas crónicas e que se agudizaram, outras decorrentes de novas necessidades. Houve uma redução do acompanhamento à patologia “não-COVID”, que continua parcialmente por recuperar.
Papel central e insubstituível do SNS no nosso país
Ficaram mais evidentes as dificuldades de coordenação, de planeamento e de gestão. E adiou-se a resolução de problemas de fundo do SNS: o atraso na integração dos cuidados, as desigualdades no acesso, a falta de profissionais, as graves lacunas nos cuidados continuados, na saúde mental e na saúde pública e o difícil relacionamento com o setor privado.
Ainda assim, a pandemia de COVID-19 permitiu consensualizar algumas certezas. A primeira certeza é que ficou claro o papel central e insubstituível do SNS no nosso país. Todos percebemos que só um serviço de saúde público e universal garante o direito à Saúde a toda a população, em qualquer circunstância. Esta perceção generalizada do papel central e insubstituível do SNS é politicamente muito relevante, porque nos últimos anos temos vivido a reconfiguração do sistema de saúde em Portugal, a progressiva substituição do SNS pelos privados, o esvaziamento do serviço público e a criação de incentivos para os cidadãos deixarem de recorrer ao serviço público. Esperemos que esta convicção se traduza numa exigência do reforço do SNS.
Um Serviço Nacional de Saúde mais robusto, que responda às necessidades das pessoas
A pandemia de COVID-19 também alterou a perceção sobre a relevância dos profissionais de saúde. Toda a comunidade percebeu a importância de ter profissionais empenhados, qualificados e a trabalhar no serviço público.
Para um Serviço Nacional de Saúde mais robusto e que responda às necessidades das pessoas é necessário: o aumento do financiamento público, o desenvolvimento organizacional do SNS, a implementação de uma política de recursos humanos e a separação entre o público e o privado.
É por todos reconhecida a necessidade de forte reforço do investimento no SNS. Existe um volume assustador de suborçamentação do setor, que se acumula há uma década, e o SNS chegou à pandemia a enfrentar graves problemas estruturais.
Aumentar significativamente o financiamento do SNS
A responsabilidade do Estado no financiamento global da saúde em Portugal é reduzida por comparação com a média da OCDE, já que a % da despesa pública em saúde face ao PIB é inferior à da OCDE (66% versus 71%, em 2018). A despesa das famílias com pagamentos diretos e seguro de saúde voluntário é elevada, acima da média da OCDE, o que leva a desigualdade no acesso a cuidados.
O subfinanciamento crónico gera dívida, corta a autonomia na contratação e no investimento e limita a capacidade de resposta do SNS, o que é agravado pela transferência de recursos para o setor privado.
Precisamos assim de aumentar significativamente o financiamento do SNS, mesmo face à crise económica, porque é essencial investir na renovação de instalações, na modernização tecnológica e em inovação terapêutica. E também para proceder a atualizações salariais e aumento de profissionais a trabalhar no SNS.
Desenvolver e inovar a organização do SNS
Portugal vive mudanças do seu perfil demográfico e epidemiológico, somos um país envelhecido e em que as doenças crónicas são responsáveis pela maior parte das mortes e da utilização de cuidados de saúde, e precisamos de um SNS para o nosso tempo. É fundamental que o SNS desenvolva e inove a sua organização para responder ao desafio do envelhecimento e para assegurar a integração de cuidados centrada no percurso das pessoas. Precisamos de um sistema de saúde em rede, assente em unidades de proximidade acessíveis, que garantem a continuidade de cuidados e que se articulam para prestar os cuidados necessários.
É essencial: Qualificar os Cuidados de Saúde Primários, dando novo impulso à reforma de implementação do modelo de Unidade de Saúde Familiar; Investir e melhorar a resposta da Rede de Cuidados Continuados Integrados, incluindo no domínio da Saúde Mental; Promover a reorganização dos Hospitais, prestadores de cuidados em situações agudas ou crónicas graves, e otimizar os seus recursos (internalizando os exames complementares de diagnóstico, por exemplo); Reforçar a capacidade e o papel das unidades funcionais de Saúde Pública
Implementar uma política de recursos humanos
O nosso SNS vive com carência de profissionais. Isto deve-se à restrição de contratações, ao facto de haver poucos médicos entre os 41 e os 50 anos, consequência dos numerus clausus nos anos 90 do século XX, e à captação de profissionais pelos privados, com remunerações mais elevadas. Esta diminuição do número de profissionais obriga a contratação externa, com pior qualidade e coerência dos cuidados, e com custos mais elevados. É absolutamente crítico implementar uma política de recursos humanos, contratar mais e melhorar as condições de trabalho, para termos profissionais motivados e respeitados no Serviço Nacional de Saúde. É também preciso apostar na não acumulação de emprego, revertendo décadas de prática de pluriemprego na saúde.
Nos últimos anos foram criadas as condições para o crescimento do setor privado de prestação de cuidados de saúde. A Lei de Bases da Saúde de 1990 indicava que “é apoiado o desenvolvimento do setor privado da saúde e, em particular, as iniciativas das instituições particulares de solidariedade social, em concorrência com o setor público”.
Que haja uma clara separação dos dois setores e uma forte regulação do setor privado
Em setembro de 2019 foi aprovada a nova Lei de Bases da Saúde, que representa uma alteração substancial à de 1990, indicando que “quando o SNS não tiver, comprovadamente, capacidade para a prestação de cuidados em tempo útil, podem ser celebrados contratos com entidades do setor privado, do setor social e com profissionais em regime de trabalho independente (…)” e que o setor privado seja complementar do SNS.
É essencial que haja uma clara separação dos dois setores e uma forte regulação do setor privado. A participação do setor privado no sistema nacional de saúde tem que acontecer num quadro operacional claro a nível nacional e o SNS deve antecipar-se e definir critérios e áreas dessa complementaridade.
Esperemos que esta crise represente uma oportunidade para reconhecer as insuficiências, aprender e nos mobilizarmos para as mudanças essenciais para um SNS melhor, pois “o SNS é um património moral irrenunciável da nossa Democracia, indispensável à cidadania, à dignidade individual e à justiça coletiva” (António Arnaut).
*Licenciada em Medicina
Nota: Este artigo foi inicialmente publicado no «Voz do Trabalho» jornal da LOC/MTC, e tem a autorização da autora.e do Director daquela publicação.