Abel Pena*
O lítio é provavelmente uma das palavras mais em moda nos últimos tempos. Desde que o governo viabilizou a prospeção de lítio em seis zonas do país, a sociedade mobilizou-se, sucedem-se manifestações, cresce o furor e a controvérsia. O lítio une e divide cidadãos, políticos, autarcas e a sociedade em geral. E com razão. A informação é escassa, pouco convincente e ainda menos esclarecedora. Face à crise energética mundial, e sendo Portugal o primeiro país da europa e o sexto do mundo com maiores reservas de lítio, é compreensível que isto aconteça. Mas caminharemos nós para uma nova idade do mundo, a idade do lítio?
O conhecimento histórico diz-nos que foi sempre assim, desde os tempos primitivos ao Antropoceno (Paul Crutzen, 1995). Hesíodo, o poeta-lavrador do séc. VIII a.C., dividiu o mundo em cinco idades (ouro, prata, bronze, heróis e semideuses e ferro), mito que alimentou o imaginário europeu até ao séc. XVII. É sabido que essas descobertas estão muitas vezes associadas à guerra, mas também ao desenvolvimento tecnológico e industrial. Tome-se como exemplo a idade do bronze ou do calcolítico (3000 a.C.).
A difusão do cobre e do bronze revolucionaram por toda a europa as técnicas de metalurgia, alteraram as relações sociais, económicas, sociais e guerreiras. Minas, pedreiras, grutas, labirintos suscitaram desde sempre a curiosidade dos homens e revelaram a história viva e secreta da Terra-Mãe. Quanta beleza existe debaixo da terra! O empirismo e a imaginação literária, por seu lado, mostraram a criatividade e a sacralidade da natureza e deram origem ao imaginário dos lugares subterrâneos. A obra literária do escritor dinamarquês Ludvig Holberg (séc. XVIII) sobre a cosmografia subterrânea e a viagem fantástica de Nicolas Klimius ao mundo subterrâneo (1741) deixaram a imagem de um universo belo, aberto, repleto de espaços e de canais secretos que ligavam as entranhas da terra à superfície terrestre. “Vós que entrais aqui, abandonai toda a esperança” advertia Dante na Divina Comédia. Este aviso gravado numa pedra à entrada do inferno foi, no entanto, ignorado pelos primeiros viajantes da idade moderna que viram na Terra, não a Grande-Mãe sagrada dos antigos, mas um mundo ao serviço de tudo o que é humano. A terra, fonte de vida, entrou no processo de dessacralização.
Mas se o mundo subterrâneo esteve na origem das civilizações, também o está no centro da cultura humana. E daí o conflito entre natureza, cultura e sociedade. Por isso, cada vez que se descobre um mineral precioso para a humanidade, lá surge o conflito. Assim acontece com o lítio, como aconteceu entre nós com o volfrâmio usado mais para fins militares e belicistas do que para o desenvolvimento e bem-estar das populações. Nós não estamos em guerra, ou melhor, a nossa guerra é o consumismo desenfreado face a escassez de recursos. Das baterias de telemóvel ao computador e a determinados medicamentos tudo hoje precisa de lítio. A sustentabilidade energética passa por aí, mas não só. Por isso vejo com agrado a mobilização das populações do Interior face à iminente prospeção e exploração do lítio nas suas regiões. Mas há que pesar bem os prós e os contras, há que medir bem as vantagens e as desvantagens, distinguir as oportunidades do oportunismo.
Pronuncio-me vivamente contra uma exploração selvagem dos recursos, contra qualquer exploração que afecte os nossos já frágeis e escassos lençóis freáticos, contra grutas, minas, gargantas e buracos a céu aberto e contra tudo o que destrua o nosso sistema ecológico. Mas também sou contra a especulação imobiliária e fiduciária que a exploração do lítio irá desencadear, contra um Interior pobre e esquecido, contra a desinformação e os oportunismos políticos, contra a desertificação demográfica e ambiental. Em última análise, a decisão cabe às autarquias e às populações depois de devidamente esclarecidas. O que a Terra dá, a Terra tira, e o lítio já lá está há milhares de anos.
*Professor Aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,dirigente Associativo.