Emídio Martins tem um percurso de vida admirável.Foi militante da JOC e da LOC da qual foi Presidente, até dirigente nacional da CGTP, retornando após a reforma a militante de base na sua terra Natal, Torres Novas.Foi um resistente à ditadura, membro do Centro de Cultura Operária (CCO) e da BASE ,grupo clandestino constituido por militantes operários católicos que, após o 25 de Abril, constituiria a BASE-FUT. Emídio Martins foi sempre um homem de fé, do diálogo, da criação de pontes e consensos e da unidade.Por altura da homenagem dos seus 75 anos o jornal da região de Torres Novas, o Torrejano, descrevia da seguinte forma o Emíidio:«homem comprometido no combate por uma Igreja Católica mais fraterna e por um povo mais Livre!»
Como homenagem aos seus mais de oitenta anos e como contributo para a memória operária, e com a devida autorização, retiramos do Boletim de Militantes da LOC uma entrevista ao Emídio Martins que nos mostra ,na sua simplicidade, a grandeza deste miltante cristão e sindicalista de Abril.
Qual foi o seu percurso até aqui?
– Na JOC, dos 16 aos 25 anos (1955 a 1964): Secretário e Presidente na secção de Torres Novas; e Responsável de Zona (território equivalente ao da actual diocese de Santarém). Existia JOC em Torres Novas, Lapas, Meia Via, Entroncamento, Tomar, Carregueiros, Linhaceira, Santarém e Moitas Venda (próximo de Torres Novas, mas da Diocese de Leiria).
Na LOC, dos 25 aos 81 … anos (1964 a 2020): Presidente de Secção, Responsável de Zona. De Setembro de 1973 a Maio de 197474 (altura em que me foi feito o desafio para ir para Lisboa), Secretário-geral permanente; de 1974/80 (depois da fusão LOC/LOCF), Coordenador nacional (Secretário); de 1983/1986, Coordenador nacional (Presidente); de 1986 a 2005, membro da Equipa de Base da Sé (Lisboa); de 2005 a 2020 … membros da Equipa de Base da LOC/MTC de Torres Novas.
Como começou?
– Em Torres Novas, após a experiência da JOC, com o casamento, em Agosto de 1964, faço a minha adesão à LOC.
À medida que me ia envolvendo, participando nas reuniões do Grupo de Base, e nas actividades diocesanas (à época na Diocese de Lisboa), progressivamente ia assumindo responsabilidades, tais como, de “Presidente”, de Secção, de Responsável de zona, e, nesta função, membro da Direção Diocesana da LOC de Lisboa.
Entretanto, nos Movimentos Operários de Ação Católica, a prática e a dinâmica da Revisão de Vida Operária (RVO), dava início a um processo de tomada de consciência crítica, face aos problemas da vida operária, e à forma como a sociedade se organizava, desafiando ao dever do compromisso pela mudança.
O exercício da Revisão de Vida Operária (RVO) pessoal, mas essencialmente em grupo, fazia a exigência de olhar a vida – um olhar crítico sobre as realidades, até à descoberta das suas causas e consequências, e à identificação dos desafios que se colocavam. Depois, há opções e responsabilidades a assumir de acordo com os respetivos contextos.
De 1964 a 1973 – altura em que me foi feito o desafio para ir para o Secretariado nacional, como dirigente permanente – ia-me tornando mais militante comprometido nas “realidades temporais”: na ação “para-sindical” e política, e exercendo as funções de coordenação e animação de militantes, e de grupos de base, de acordo com as orientações do Movimento, a plano diocesano e nacional.
Estas orientações – num contexto de ditadura e repressão fascista, eram determinadas pela reflexão sobre a vida e a acção dos trabalhadores, das movimentações operárias em varias regiões do país, e inspiradas à luz do Evangelho, da doutrina social da Igreja (DSI) e do Concílio Vaticano II.
Aproveito para destacar a preparação e realização do 1º Conselho Nacional de Militantes, na história do Movimento LOC, em Maio de 1970, em Fátima, com 127 delegados das equipas de base, diocesanas e nacional. Nesta actividade, onde participei, a LOC, após a análise à situação dos trabalhadores – da classe operária -, e do discernimento evangélico, faz a denúncia dos males e consequências do sistema capitalista e desafia a Igreja a comprometer-se mais com o mundo dos mais pobres, e afirma-se empenhada na construção de uma sociedade nova.
Se tinham filhos, como conciliavam a vida familiar com a vida em grupo?
Em Torres Novas, uma Vila de província (hoje cidade), a proximidade da casa / trabalho / casa, era de pouca distância e rápida, a família estava perto, sobretudo a avó… Foi o que aconteceu desde 1965 a 1973. Mas, também se tornava possível com a adesão à LOC da Maria Hermínia, feita entretanto, e, nomeadamente, para actividades em Lisboa, poder levar os 3 filhos – a Joaninha (Maria João) que – a vida assim quis – veio a ser Presidente nacional da JOCF), a Graça e o Zé.
Como era a sua vida?
Eu era Empregado de Escritório numa empresa, e a Maria Hermínia era professora primária (do Ensino Básico). Trabalhávamos na mesma localidade, a 3 Km da vila.
Contrariamente à situação de solteiros (origem de famílias operárias – pobres), tínhamos emprego permanente e vencimentos que nos davam tranquilidade.
Porém, como consequência dos empenhamentos militantes, a certa altura, sentimos isso sim, aquela intranquilidade do medo…
Como eram as vossas reuniões?
Efetivamente, a partir da minha experiência, trata-se de um “processo” histórico: No início, a Secção da LOC (eram dois grupos) era constituída por elementos oriundos de duas gerações da JOC. Com a implementação da RVO (em 1967), e com as atividades e publicações do Centro de Cultura Operária – CCO, (e depois a BASE), (que eu animava), foram-se colocando – de forma cada vez mais exigente – interpelações e o dever do compromisso na realidade de maneira mais concreto. Esta situação trouxe algumas dificuldades…
Por isso, com um certo “jeito” (quase clandestinidade) foi criado um “Grupo de RVO”, de 7 elementos, que reunia, quinzenalmente, à vez, em casa de cada um. A certa altura, em virtude do clima de repressão que existia, um casal de militantes com a família, e um outro militante, deste Grupo, tiveram que imigrar.
De que falavam?
Necessariamente, de casos de vida, de situações, de acontecimento, tendo presente a sociedade antidemocrática em que vivíamos: lutas, despedimentos, imigração, liberdade sindical, direitos humanos… E, refletir como dizia o Papa João XXIII, na Encíclica Mater et Magistra, nº 235, 1961: Para levar a realizações concretas os princípios e as diretrizes sociais, passa-se ordinariamente por três fases: estudo da situação; apreciação da mesma à luz desses princípios (que são: o Bem Comum, o Destino Universal dos Bens, a Solidariedade, a Subsidiariedade, a Participação – em relação com os valores da Verdade, da Liberdade e da Justiça) e diretrizes; exame e determinação do que se pode e deve fazer para aplicar os princípios e as diretrizes à prática, segundo o modo e no grau que a situação permite ou reclama. São os três momentos que habitualmente se exprimem com as palavras seguintes: “ver, julgar e agir“.
As reuniões eram de quanto em quanto tempo?
As reuniões do Grupo de Base eram, por regra, quinzenais. E as de Zona, de acordo com um Plano de Actividade.
Lembra-se de alguma ação concreta que tenham realizado?
(Coloco esta experiência no plano pessoal, por consequência …) No ano de 1972, em plena “primavera marcelista”, ouso associar-me ao Cine-Clube de Torres Novas, tendo depois vindo a ser membro da sua Direção. Esta posição correspondia à reflexão e às orientações do Movimento, de presença e compromisso dos militantes nas “estruturas”, com e ao lado dos outros.
O Cine-Clube era geralmente dirigido e frequentado por pessoas de quem se dizia serem do “contra”, e, em momentos eleitorais situavam-se na oposição democrática ao regime salazarista (eu próprio me liguei à CDE (Comissões Democráticas Eleitorais). Nenhuma pessoa ligada à Igreja o frequentava.
A minha posição significava solidariedade e fraternidade com outras pessoas que conhecia; tinha o significado e a perspectiva da luta pela Democracia; e a motivação cristã: – “As tarefas e actividades seculares competem (…) aos leigos (…) que, só ou associados, actuam como cidadãos do mundo” (GS, nº 43,1965). Mas esta opção não foi bem aceite nalguns sectores da Igreja local.
Que dificuldades encontravam nessa época?
As dificuldades, ou constrangimentos, apresentavam-se sobretudo a partir de sinais do clima repressivo do regime: quanto mais nos comprometíamos, quer no campo sindical, político, ou cultural, assaltava-nos o receio e o medo… inclusive com os “avisos” que chegavam de vários modos para “termos cuidado”. A correspondência (mesmo a recebida da LOC e da Pragma), era violada. Os militantes que tiveram que imigrar para França, (trabalhavam em empresas diferentes) fizeram-no porque sentiram a “ameaça” próxima.
Quais eram os apoios que tinham nessa altura – Igreja, Bispos, padres…
O apoio, mais expressivo e sistemático, era garantido pelo próprio Movimento, por dirigentes, Assistentes, e padres no âmbito da Pastoral Operária. Até porque era próprio da missão e vocação da LOC, e da PO, animar e comprometer-nos na vida concerta – nas realidades terrestres – experimentando a síntese Fé / Vida.
Outro apoio, e estímulo eram encontrados nas directrizes da DSI – nas Encíclicas Mater et Magistra e Pacem in Terris), do Papa João XXIII – e nos Documentos do Concílio Vaticano II (1962/1965).
Não havia apoio a nível paroquial. Em certas circunstâncias havia mesmo o “levantar” de obstáculos. Por isso, para algumas actividades, e celebrações, procurávamos o apoio do pároco da paróquia vizinha (Lapas), que aceitava ser Assistente de Base e a nível de Zona (Pe. Amílcar Fialho).
Acha que era mais difícil do que agora sensibilizar as pessoas para fazerem parte do movimento?
Creio poder dizer que (de meados da década de1960 e início da década de 1970, até ao 25 de Abril de 1974), a LOC beneficiou da adesão de ex-militantes da JOC e da JOCF (vindo a organizar-se em “Equipas mistas”, em Torres Novas, ainda antes da fusão) e começa a ser, mais um Movimento de militantes, do que de “filiados” de massas. Algumas pessoas – simpatizantes – aceitavam participar nas actividades promovidas, mas não aderiam ao Grupo.
Contudo, nunca foi fácil a adesão à LOC, por parte de outras pessoas, cuja razão – como se foi percebendo – estava na exigência do compromisso: fiéis leigos empenhados, em “mundo operário”, na transformação da sociedade, construindo um mundo melhor.
Hoje, e ao longo do tempo, esta realidade permanece…
Uma Pastoral mais comprometida com a vida concreta e com os Direitos Humanos (estou a escrever isto em 10 de Dezembro, data da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH, 1948), talvez suscitasse, e educasse, para a militância… Estar próximo: Fraternidade e amizade social.
Que diferenças encontram hoje, na forma de evangelizar o mundo operário?
Na época (1960 /1970, a “classe operária” caracterizava-se a partir da existência de médias e grandes empresas – fábricas e oficinas – que empregavam centenas, e milhares de trabalhadores no mesmo território (Concelho, ou Região), com emprego permanente, mas com salários muito baixos, e, na generalidade, com a instrução primária (4ª classe). E, consequentemente, com condições de vida ao nível do limiar da sobrevivência… Muitos deles, e suas famílias, eram de prática religiosa.
Não existiam os direitos fundamentais: de reunião, de associação, de pensamento… mas a maioria ia aceitando a “ordem estabelecida”.
A Pastoral Paroquial limitava-se à frequência e manutenção dos actos litúrgicos. Sem qualquer razão e educação para empenhamentos sociais, de cidadania!
Os Movimentos Operários de Acção Católica, com a metodologia do Ver, Julgar e Agir, e depois com a Revisão de Vida Operária, formavam pessoas, que se tornavam militantes para agir. A evangelização passava por isto. Daí o crédito, a confiança e a amizade que alguns dedicavam – e ainda dedicam – aos militantes e ao próprio Movimento LOC.
Lembro, a propósito, o seguinte: a partir de uma nova Legislação Sindical, do governo de Marcelo Caetano, e depois, das primeiras reuniões intersindicais, em Outubro de 1970, questões de direitos laborais passaram para o debate; desenvolve-se uma certa dinâmica reivindicativa por todo o país; e surgem sindicatos com dirigentes entretanto eleitos e da confiança dos trabalhadores. E alguns militantes da LOC estiveram no debate, na acção reivindicativa, e nas organizações sindicais…
Hoje, para além de um universo de pequenas e micro empresas, que continua, há uma alteração qualitativa na estrutura do trabalho: de massas de operários trabalhando na mesma unidade de produção, surgiu, nos últimos tempos, a multiplicidade de categorias e funções operando em pequenas unidades, com predomínio para o Comercio e Serviços, com elevado nível de suporte tecnológico. Embora esses trabalhadores dependam da remuneração salarial, da contratação, o sentido ou a consciência de “classe”, de necessidade de associação, e de solidariedade estão porventura mais esbatidos.
Esta situação, com algumas excepções é, todavia, marcada por grandes precariedades, quer no trabalho / emprego, quer na vida pessoal e familiar. Aumentam as desigualdades sociais, e muitas consequências nos comportamentos individuais…
Será necessária uma caracterização do “mundo do trabalho”? O que é que os homens e as mulheres que trabalham têm em comum, na relação laboral? É só o salário contratado e a protecção social? Que outros direitos devem ser defendidos e de que modo? Os sindicatos são na sua génese, organizações históricas de solidariedade. O que se propõem fazer, neste tempo, para a valorização do Trabalho? E para a representação das pessoas do mundo do Trabalho?
A evangelização solicita estas atenções e o cuidado assumindo responsabilidades na defesa da Dignidade das pessoas humana e na promoção do Bem Comum. As gerações mais novas deverão – em tempo pós pandemia – assumir mais protagonismo nas soluções sociais e políticas para o bem da sociedade.
Que valores ficaram para a vida?
– Os valores da solidariedade, da fraternidade, da fidelidade …
Que sentimento sente em relação ao Movimento LOC/MTC, e como podem ser ainda um vínculo para que novos membros adiram ao movimento? Filhos, netos, amigos, vizinhos….
Sinto que, no contexto sócio, económico, político e cultural actual, não parece fácil conseguir equacionar estratégias de recrutamento. As situações de vida e os campos de acção dos militantes estão (julgo) muito reduzidos… A própria organização do trabalho, com tempos de sobrecarga de ocupação das pessoas, pelas longas jornadas diárias (incluindo as distâncias casa/ trabalho /casa, e nalguns casos por outros problemas da vida, não permitem ter alguma disponibilidade… Mas, também a sociedade consumista, por muitos meios, favorece o individualismo…
Aderir à LOC/MTC (como aliás a outras organizações de caracter social ou político), para além da escolha por opções de identidade, algum estudo, e compromisso com a construção de um mundo melhor (pelo lado dos trabalhadores), exige disponibilidade espiritual e de tempo…
A conjuntura actual (de crise económica, financeira e pandemia, também é condicionante.
Entretanto, como noutras ocasiões, a entrada de militantes e dirigentes formados na JOC, nos últimos tempos, seria / será uma orientação recomendável, a pôr em prática no curto prazo.
Quanto aos filhos, eles tentam assegurar – com dignidade as suas vidas e o futuro dos seus. Os netos (licenciados) buscam ainda o emprego estável. Os vizinhos: há os mais idosos, e os que trabalham não parece terem condições propícias para tal desafio.
O Papa Francisco na Fratelli Tutti, nº 11, diz-nos: «cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho. O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia”. É a estratégia, e a Esperança!
Que mensagem quer deixar aos militantes atuais?
Enquanto destinatários de uma mensagem, julgo que, dos actuais militantes, a maioria encontra-se no grupo etário situado nos mais de 65 anos de idade, reformados, e destes alguns deles ainda dão um bom contributo em associações / instituições (no próximo dia 1 de Março espero contar 82, e continuar…). Ora, para esses, desejo que não lhes falte a saúde, e aquela resiliência – e resistência (uma certa fidelidade) para aproveitar e manter a “circulação” de vida e amizade que o Movimento anima; ao mesmo tempo que – com os seus meios – nos aproxima da realidade, quer no que concerne aos constrangimentos sociais, políticos ou culturais, quer no que seja descoberta de sinais, ou caminho de Esperança.
Aos que a idade permite estar activos – no trabalho, e nas organizações / instituições – que não lhes falte a sabedoria bastante para fazerem – com a ajuda das reflexões do Papa Francisco – que a LOC/MTC exista como um movimento arauto de mensagens positivas e de animação de pessoas comprometidas – com outros – para a mudança… percebendo o que é importante e significativo para o “mundo do trabalho”: Dignificar o Trabalho e ser parte do destino universal dos bens – JUSTIÇA!