Irene Vallejo, O Infinito num junco, Bertrand Editora, Lisboa, 2020.
O livro que Abel Pena* acaba de ler e sugere que leiamos.
No princípio era a voz, os sons indistintos das palavras. Depois os livros, inseparáveis companheiros desde a escola primária. Parte deles eram novos, outra parte herança indefectível dos irmãos mais velhos. As escolhas eram poucas ou nenhumas. O livro único, com a bandeira das quinas desfraldada com vermelho timbrado, um livro, apenas um formato de livro, igual a si próprio. Serviu famílias inteiras, moldou mentes e gerações sem recursos, limitou conhecimentos e serviu ideologias, com tantos erros científicos básicos, mas era o que havia, quando havia. Pedagogia? – nenhuma! Mas aquelas linhas negras e paralelas, que mais pareciam longos carreiros de formigas, lidas da esquerda para a direita, começavam agora a ter sentido.
As históricas carrinhas da Fundação Gulbenkian
Mais tarde, num luminoso dia de verão dos finais anos 60 chegou à minha aldeia uma carrinha Citroen de formato militar e de tom acinzentado. Toda aldeia se reuniu em torno do estranho veículo: uns alvitravam que trazia gelados, outros que era aquele queijo amarelado e leite da Cáritas americana. Mas, não, o alimento do invólucro era outro! Livros! A biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian. Desconhecido e de quem nunca ninguém ouvira falar antes, Calouste Gulbenkian, esse nome estranho à onomástica do português, depressa cativou os jovens da terra. Todos queriam ver como era aquilo lá por dentro, mas a entrada só era permitida a alguns eleitos.
No interior do recetáculo alinhavam-se centenas de livros metodicamente organizados por matérias ou por ordem alfabética, com as lombadas firmes e à vista de todos. Depois, a requisição cuidadosa, mãos lavadas e desinfetadas, livros desinfetados (imaginem o cuidado!) na entrega e na retoma, Jack London, Enide Blyton, Graham Green, Charles Dickens, Alexandre Dumas, Leão Tolstoi, Eça de Queiroz, Aquilino Ribeiro e tantos outros talentosos escritores que marcaram para sempre o imaginário dos portugueses nas longas férias estivais. Claro, os mais velhos e menos informados olhavam para aquilo com alguma desconfiança, pois numa sociedade onde predomina a cultura oral e a memória, a resistência à escrita é natural e assim foi desde sempre, mas também porque se achava que os trabalhos do campo eram mais úteis e prioritários. Em suma, ninguém fez mais pela leitura e pela cultura em Portugal do que o Senhor Calouste Gulbenkian, esse magnata do petróleo, vindo da distante Arménia, do reino indomável dos Partos que os próprios romanos nunca conseguiram vencer.
E sobre livros e bibliotecas, acode-me à memória Diógenes Laércio, um filósofo de rua que vivia dentro de uma pipa numa das mais movimentadas artérias de Atenas. Toda a gente queria consultar o filósofo no seu minúsculo e periclitante cubículo. Um dia, Alexandre Magno, já então hegemon da Grécia, visitou Diógenes e perguntou o que poderia fazer por ele. «A minha mente é um livro ambulante num corpo parado e tu nem aquilo que me tiras me podes dar» – terá respondido enigmaticamente o filósofo. E acrescentou: «afasta-te de mim, a tua sombra está a tirar-me o sol». Mas a que propósito falamos aqui de Alexandre e qual a sua relação com o livro?
Oh! Admirável e apaixonante mundo do livro! Mais de trinta séculos nos separam da invenção da escrita. Mais de 2.700 anos nos separam do milagre do alfabeto monogénico grego. Mas nós somos da época alfabética, nascemos no mundo do livro. Que sorte a nossa! Um dado adquirido, mas raramente questionado! Talvez por isso, até à universidade nunca me interessei muito em saber o que liam e como liam os nossos antepassados. Que suportes de escrita usavam? Quem eram os agentes produtores e transmissores da sua cultura? Como eram feitos os livros antes da invenção da imprensa por Gutenberg?
O grande Alexandre e o livro
Alexandre tinha 20 anos e tornou-se o general supremo (hegemon) de toda a Grécia, após o assassinato do pai, Filipe II da Macedónia. Discípulo brilhante de Aristóteles, leitor compulsivo de Homero, fascinado pelo herói Aquiles, considerando que a Grécia era demasiado pequena para ele, voltou à Macedónia, organizou um enorme exército de mercenários, atravessou o Helesponto e partiu para sempre à conquista da Ásia. Na sua biblioteca de viagem um livro ocupava um lugar especial: A Ilíada de Homero que conta as proezas heroicas de Aquiles. Aquiles foi sempre o seu herói mítico, e ele, Alexandre, a reincarnação histórica de Aquiles. Em breve, o império do jovem macedónio atingiu a assombrosa dimensão de cinco milhões de quilómetros quadrados. Foram quinze anos que abalaram o mundo antigo.
À esquerda: Musa lendo um rolo de papiro (Volumen) em dois movimentos: dextrogiro (desenrola com a mão direita) e sinistrogiro (enrola com a mão esquerda).Em baixo: rolo de papiro. |
Alexandre é um dos principiais responsáveis pela história maravilhosa do livro. Ao passar pelo delta do Nilo, o jovem príncipe desenhou num junco de papiro o que viria a ser a primeira das setenta cidades fundadas com o seu nome: Alexandria. Mais tarde, viria a ser construída pelos mais reputados arquitetos da época uma cidade moderna, hipodâmica, aberta e rasgada por grandes avenidas, com o maravilhoso farol ao fundo, cidade cosmopolita que Alexandre sonhou e nunca conheceu. Morreu a 13 de Junho de 323 a.C., na Babilónia, de febres ou envenenado pelos seus próprios generais. Tinha 32 anos.
O papiro tão abundante no Nilo e a Grande Alexandria
O papiro, abundante no delta do Nilo, viria a ser durante mais de três séculos o petróleo do mundo antigo. Por incrível acaso, foi o petróleo que trouxe até Portugal o senhor Calouste Gulbenkian e que tanto bem fez à nossa leitura. Foi o papiro que deu maior glória e absoluto domínio a Alexandria, foi o papiro que destronou as escolas da envelhecida Atenas, foi ele que levou à criação dos maiores centros de investigação do mundo greco-romano. De facto, os Ptolemeus, diádocos ou sucessores que disputaram entre si o império de Alexandre, pretensamente descendentes dos antigos faraós, criaram a Biblioteca e o Museu de Alexandria e mais tarde o Serapeu (teónimo do deus Serápis), numa espécie de Silicon Valley, MIT, CNRS ou FCT, atraindo os melhores cientistas de todo o mundo.
Diz-se que a Biblioteca de Alexandria (biblos: livro) albergava cerca de 700.000 volumes (volumina: rolos). Mas só a ele, Alexandre, semelhante aos deuses, se deve o prodígio de ter levado até ao extenso Hindu-Kush (Índia), a língua grega, o multiculturalismo, a miscigenação, os casamentos mistos entre gregos e não gregos. Ele ensinou ao mundo desconhecido a forma de pronunciar o nome de HOMERO, bastando apenas passar de lá a sol como numa escala musical. A Ilíada tornou-se assim num dos livros mais lidos e traduzidos de sempre, e Aquiles o herói preferido de Alexandre. Por isso, parece-me inspirador evocar aqui as palavras finais do discurso do nobel de Literatura de 2016, Bob Dylan: «I return once again to Homer, who says, “Sing in me, oh Muse, and through me tell the story.”
Sim, a Ilíada, o mais antigo poema épico do Ocidente, é feito de histórias maravilhosas. Do mito à história de Homero, da memória portentosa dos aedos e poetas, da cultura oral à escrita alfabética, da pedra à argila e ao bronze, do papiro ao rolo e ao pergaminho e deste ao códice e ao livro de papel e digital de hoje, de todo esse progresso de artefactos e tecnologias ao serviço da escrita e da mente, do mundo maravilhoso e poderoso dos livros e do conhecimento vital que transmitem, de tudo isso e de muito mais nos fala com entusiasmo e paixão o livro de Irene Vallejo, O Infinito num junco, Lisboa, Bertrand, 2020, pp.454.
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A longa viagem do livro
Doutorada em filologia clássica, a autora estabelece com os seus leitores um diálogo vivo de experiências feito, culto, brilhante, fundamentado e vibrante. E para guiar o leitor nesta longa viagem de 30 séculos de história do ‘livro’, a autora oferece, além de pequenas notas explicativas, tão valiosas como os pergaminhos que descreve, dois bilhetes grátis e raros neste tipo de publicações: uma bibliografia tão extensa quanto criteriosa e um índice onomástico remissivo, uma espécie de coordenadas digitais que orientam e ligam o leitor às páginas do livro. O Infinito num junco é um best-seller de vendas e traduções, um dos melhores livros de 2019, um desses livros cuja leitura nos dá cabo dos nervos e vontade de roer as unhas. Obrigatório ler.
*Professor Jubilado da Faculdade de Letras de Lisboa,dirigente associativo.