«Fratelli Tutti» é um texto anticapitalista e solidário numa Igreja de contradições

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Brandão Guedes*

A recente carta encíclica do Papa Francisco é um assinalável contributo para a reflexão sobre a actual situação do mundo e os caminhos a seguir para que nos possamos salvar como humanidade e como planeta.Num mundo céptico, descrente e indiferente é um manifesto espantoso contra a exclusão , pela humanidade, pelo amor e pela paz.Num contexto de pandemia como a que vivemos diria que, ler a Fratelli Tutti ,é uma terapia.

Não faltaram  em todo o mundo diversas reflexões sobre o texto do actual Papa ,um dos mais odiados pela direita católica e pelos empedernidos conservadores da própria Igreja.Porém, muito depressa se esquececerá o texto e não faltará gente a quem tal convenha. Saliento apenas alguns aspectos que me parecem pessoalmente mais estimulantes da «Fratelli Tutti» e algumas contradições:

As virtudes do novo documento…

Em primeiro lugar saliento a estrutura do texto e a linguagem.Impera a simplicidade das ideias e das palavras sem lhe retirar profundidade.Parece que o Papa está a falar connosco numa roda de amigos.Utiliza  expressões, parábolas e palavras de todos os dias, compreensíveis pelos católicos e não católicos da aldeia mais remota do mundo.É a linguagem de quem tem uma larga experiência pastoral nos territórios do sofrimento e da opressão.Este Papa não se refugia em abstrações e em citações bíblicas inócuas.

É uma linguagem próxima dos movimentos populares, dos que não têm terra nem teto.Uma linguagem encarnada, realista.Com este texto Francisco reabilita a Teologia da Libertação,ou seja, a leitura de cada realidade concreta à luz da fé evangélica e com o apoio das ciências sociais.Realidade, status quo, que urge transformar para fazer a fraternidade.Transformação dos nossos corações e das estruturas sociais de opressão e exploração.

É  clarificado o conceito de perdão cristão , tantas vezes redicularizado ou considerado utópico.Contra a opressão e na luta pela nossa dignidade o cristão não dará a outra face.Antes pelo contrário,há que lutar contra o opressor que nos retira a nossa dignidade .Há que retirar  ao próprio opressor os meios de opressão.Foram muitos os papas e outros clérigos que nos disseram para sempre obedecermos às autoridades instituidas mesmo que as mesmas sejam ditaduras sangrentas!Se tal acontecesse com Cristo certamente que não teria a morte horrenda da cruz e morreria na cama.

Em segundo lugar destaco a estratégia do texto.É uma visão a partir das periferias, dos pobres e dos mais frágeis.Nessa estratégia a célebre parábola do samaritano tem um lugar central.É uma critica ás actuais sociedades de consumo , ao comportamento narcisista e da indiferença, aos que olham apenas para o sucesso, para o seu corpo, carreira e bem estar pessoal.

Mas é também uma crítica para dentro da pópria Igreja, uma autocrítica  porque salienta que os que passaram indiferentes perante o estropiado e assaltado eram religiosos e nada fizeram, enquanto que o samaritano,um laico excluido e estrangeiro teve compaixão.Algo que tanto falta nas actuais sociedades competitivas do ultra capitalismo.

Este texto de Francisco é, de facto, um texto anticapitalista, de esperança e solidário.Não propõe qualquer modelo de sociedade;não propõe o socialismo nem qualquer outro sistema.Propõe sim a fraternidade e a amizade social,uma conversão, tanto a católicos como a agnósticos e ateus.Há que mudar de vida , de economia, de relacionamento com a natureza, com a guerra e  a paz.Temos que cooperar e ver o mundo com outros olhos, precisamente a partir dos mais pobres e dos que estão fora do sistema.O que nos salva é a compaixão e o amor e não a indiferença.Urge uma outra relação não predadora com a natureza.Tal caminho dará futuro ás nossa sociedades e futuras gerações.O actual onde temos estado não tem futuro.

E as contradições…..

No entanto este documento coloca em evidência como nunca as contradições que sempre atarvessaram a Igreja Católica e que afastam milhões de cristãos da mesma, pese toda a reflexão eclesiológica para o evitar .É um documento que mais uma vez vai servir a gregos e troianos sem questionar os poderosos, embora possa reforçar os mais fracos.

Como poderá a estrutura do Vaticano e, de certo modo, da Igreja Católica ou de certos sectores desta assimilarem as perspectivas anticapitalistas e ecologistas do documento?Amplos sectores, inclusive do clero, que gerem bancos,empresas , colégios privados,universidades e santuários à boa maneira capitalista?Alguns, inclusive do alto clero, entram nos mercados bolsistas e na especulação como qualquer grande capitalista?

Um documento que tem uma perspectiva de inclusão, de solidariedade, de amor e paz, e,  ao mesmo tempo, amplos sectores da organização eclesial, em particular a cúria, coloca metade da humanidade, as mulheres numa situação subalterna e discriminatória?Um documento  que perspectiva uma Igreja de serviço  e de luta pela dignidade dos pobres e explorados enquanto a estratégia global da Organização é dar-se bem com os poderosos e ser ela mesma um poder mundano?

Oxalá que este documento ,na linha de outros do Papa Francisco,  sirva de instrumento a muitos cristãos na luta pelos direitos dos homens e mulheres, pela justiça contra a opressão e exploração.Pela terra, pelo pão e pelo tecto.Por um Planeta com futuro!Porém, a estrutura clerical e dos interesses vai esquecer muito depressa este documento.Para o poder económico multinacional e seus serventuários este é mais um documento esquerdista de um Papa difícil de enquadrar.

 

*Dirigente Nacional da BASE-FUT

 

Junta-te à BASE-FUT!