António Azevedo Filipe reside em Peniche, é médico e militante da BASE-FUT.A partir da sua longa experiência no Serviço Nacional de Saúde respondeu a algumas questões de forma clara e contundente fazendo uma avaliação dos problemas que afectam o sistema de saúde português.
1.Em termos internacionais o nosso SNS é considerado dos melhores sistemas de saúde. Todavia está hoje com alguns problemas. Na tua opinião quais são os mais importantes?
« Existem problemas graves a vários níveis. Muitos e interrelacionados. Podíamos escrever um livro sobre o tema-diz-nos o médico e militante da BASE-FUT Azevedo Filipe sobre a situação do Serviço Nacional de Saúde. Para simplificar considero três aspetos: a gestão, os recursos humanos, e os edifícios e equipamentos.Eis a entrevista:
- Os problemas da gestão.
Nos anos da-Leonor Beleza/ Cavaco e Silva, a clientela partidária ocupou os lugares do topo e, regra geral, rodeou-se de gente de perfil técnico duvidoso, mas utilitários do neoliberalismo (cães de fila, carreiristas, castrados de ideias, etc.). Gente mais interessada em destruir o SNS, expurgando “conceitos vermelhos”, “vozes proletárias” e tudo o que impedisse abrir caminho aos interesses da medicina privada, dos grupos económicos (portugueses e estrangeiros), das seguradoras, dos especuladores imobiliários, das multinacionais farmacêuticas, das multinacionais dos equipamentos hospitalares e uma multidão de empreendedores na penumbra do orçamento da Saúde.
As parcerias, as entidades reguladoras, as missões, as administrações centrais e regionais, os agrupamentos, ainda andam por aí com os seus gestores a imitar os gestores bancários: ganham tanto mais quanto mais a sua memória se esquece do que fizeram (ou não fizeram).
- b) Os problemas dos Recursos Humanos.
Mais uma vez lembro: foram Leonor Beleza/Cavaco Silva os iniciadores de uma ofensiva contra o SNS, em geral, e os médicos em particular. Desde o prestígio ao vencimento foi sempre ao ataque, muitas vezes com ajuda de gente do Partido Socialista. Atacaram em pontos fundamentais como a relação médico -doente, a hierarquia natural do médico numa equipa multidisciplinar (por ser mais graduado e ter mais responsabilidade), a estabilidade da formação médica, as carreiras. Conseguiram desmotivar, gerar conflitos e provocar o caos nos serviços. Enfermeiros, Técnicos de Diagnostico e Terapêutica, Nutricionistas, Administrativos, Auxiliares e Porteiros perderam as referências e ficaram à mercê de interesses vários. Resultado: cada um para seu lado, descrentes na utilidade do que faziam, a gastar energia e, de ano para ano, num salve-se quem poder menos o doente.
Ao fim de algum tempo uns reformaram-se, outros partiram para o estrangeiro e outros, com o estômago adequado, atiraram-se para o privado como gato a bofe.
- c) A nível dos edifícios e equipamentos.
Os grandes teóricos do Arco da Governação que nos desgovernaram sucessivamente, ditaram: “menos Estado melhor Estado”. Vai daí, com e sem o aplauso da União Europeia/FMI, começaram: a fechar maternidades, Centros de Saúde, Hospitais e a transferir ou inutilizar equipamentos (analises, Rx, ecógrafos, computadores etc.), das áreas periféricas para sabe Deus onde; a despedir funcionários de contratos temporários e escravizar os que restavam. Mais, diminuíam os ordenados e contratavam tarefeiros a empresas privadas que cobravam o dobro e pagavam pouco a trabalhadores desqualificados sem direito a férias ou décimo terceiro mês. Encolhia-se a Função pública, mas pagava-se aos grandes gestores, aos CR7 do mercado, aos DDTs dos cintos apertados.
Os resistentes, esgotados, foram cedendo, os materiais por falta de manutenção griparam, os stocks, até os mais simples como papel, luvas ou linhas para coser as feridas ficaram por renovar e a qualidade caiu a pique (esperança de vida, mortalidade infantil, prevenção de doenças. Era de esperar: menos estado, SNS em mau estado, privados engordados.
Em conclusão
O SNS, uma das grandes conquistas de Abril, foi colocado em situação de agonia pelos responsáveis do Arco da Governação neoliberal das últimas décadas que destruíram carreiras, recursos e o sonho de um serviço Geral, Universal e Gratuito. Fizeram tudo para entregar a Saúde aos privados que floresceram no negócio da doença, com a cumplicidade de políticos, alguns médicos e outros grupos profissionais.
2.Consideras que é importante que no SNS seja clara a separação entre o público e privado? Um deve ser complementar do outro?
A separação deve ser clara. A césar o que é de césar. Ninguém pode servir dois senhores ao mesmo tempo: estar no público a pensar que no privado ganhava mais dinheiro com aqueles doentes e estar no privado a pensar que com os doentes do público fazia bom dinheiro.
A saúde como matéria prima para o lucro e instrumento da exploração do homem pelo homem e a perspetiva capitalista do lucro com sofrimento alheio têm de parar. A lógica tem de ser outra
Aos trabalhadores do serviço público compete trabalhar e prestar o melhor serviço possível à comunidade.
Por isso, os trabalhadores da saúde devem ser remunerados conforme o impacto da sua atividade na proteção social, no bem-estar e na qualidade de vida das pessoas.
Os serviços privados devem montar e desenvolver o negócio nas áreas e nos locais onde o estado (ainda) não esteja em condições de responder. Não o contrário, isto é: o privado andar a ver o que dá dinheiro para sacar ao Estado e às pessoas jogando com o consumismo, o luxo, a moda e o marketing em vez da melhoria da qualidade de vida e saúde das populações. Os investimentos privados úteis, por exemplo: serviços, tecnologia de ponta, clínicas em locais carenciados e outros são inquestionáveis necessidades, podem gerar bons resultados e devem ser apoiados pelo SNS, mas têm de ser negociados por gente à prova de corrupção.
3.A saúde como ramo de negócio não irá criar sempre uma tensão com o SNS?
Não, se for vista como um negócio tipo leasing ou ALD (aluguer de longa duração), semelhante ao que acontece na compra de um automóvel: o estado paga até quando o investimento estiver amortizado, com o lucro justo para a iniciativa privada. Depois, líquida o valor residual e fica com o bem ou serviço e integra (ou não) os trabalhadores operacionais. A iniciativa privada nunca perderia dinheiro, os utentes e trabalhadores nunca perderiam o serviço.
4.Os conflitos laborais na saúde devem ter sempre uma atenção especial para com a situação dos doentes, nomeadamente nos capítulos dos serviços mínimos?
O direito à greve é um direito conquistado em Abril. Os serviços mínimos devem ser assegurados de uma forma clara e os Sindicatos estão atentos a isso, salvaguardando situações limite que muitas vezes demagógicamente empoladas. Há muitas outras profissões que colocam vidas em perigo quando fazem greves e ninguém fala porque, se algo corre mal, estão lá os trabalhadores da saúde, muitas vezes desconsiderados e mal pagos.
A situação dos médicos é a que conheço melhor. As greves garantem uma assistência igual à prestada aos fins de semana e feriados, acrescentando outras clausulas que a Ordem dos médicos e a Comissão de Ética imponham.
Sobre este assunto, para terminar, acrescento o meu repúdio por ver sindicatos de um determinado sector profissional ligado à saúde, convocar paralisações no sector público, enquanto os mesmos associados passam o dia a trabalhar num sector privado, altamente concorrencial e odiento para com o Estado.
Os grandes prejudicados são os utentes do SNS de menor rendimento, porque a classe mais favorecida paga e vai ao privado. É mais um argumento para acabar com a promiscuidade entre os dois sectores. Infelizmente, os argumentos não chegam.
*António Azevedo Filipe é Médico, Especialista Consultor de Medicina Geral e Familiar. Formador.Tem um longo curriculum no associativismo e na actividade cívica.