Organização do tempo de trabalho e a Constituição

 

-A organizar o tempo de trabalho deve obedecer à exigência constitucional de conciliar a vida profissional com a vida familiar;Não podem ser apenas considerados os interesses das empresas.

Em janeiro de 2019 a CGTP entregou ao governo e a outras entidades um parecer de grande qualidade intitulado «Dúvidas de constitucionalidade suscitadas a propósito da Lei nº136/XIII que altera o Código do Trabalho e a respectiva regulamentação e o Código dos regimes contributivos dos sistema previdencial de segurança social.Retiramos deste documento uma parte sobre a organização do tempo de trabalho ,em particular a questão do chamado«banco de horas».

«O artigo 59º, nº1, alínea f) da Constituição proclama que «Todos os trabalhadores (…) têm direito: b) à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da profissional com a vida familiar;», incumbindo desta forma o Estado de promover e desenvolver políticas laborais que permitam concretizar este desígnio.

Porém, a actual legislação laboral em matéria de organização de tempo de trabalho, ao invés do comando constitucional, consagra formas de flexibilização do tempo de trabalho apenas no interesse das empresas, a pretexto da necessidade de promover a sua competitividade e produtividade, tendo como consequência o desequilíbrio das relações laborais em favor das entidades patronais e tornando praticamente impossível a conciliação da vida pessoal e familiar com a vida profissional.

Não obstante o Código do Trabalho consagrar, no seu artigo 127º, nº3, um dever da entidade empregadora proporcionar ao trabalhador condições de trabalho que favoreçam a conciliação da  profissional com a vida familiar e pessoal, esta disposição não passa de letra morta sem qualquer aderência à realidade vivida nas empresas, caracterizada por um profundo desequilíbrio entre tempos de trabalho e tempos de não trabalho, com o trabalho a ocupar uma fatia cada vez mais desproporcionada da vida dos trabalhadores. Note-se que já não se trata de acorrer a necessidades esporádicas das empresas, mas sim de transformar a desregulação e o prolongamento dos tempos de trabalho numa normalidade, que condiciona sistemática e desproporcionadamente a vida dos trabalhadores e das suas famílias.

Neste contexto, competiria ao Governo, no âmbito desta proposta de alteração da legislação laboral, procurar inverter este estado de coisas, aprovando normas que promovessem de facto e de direito a organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de modo a facilitar a realização pessoal e a conciliação da vida profissional com a vida familiar, conforme prevê a Constituição.

Ao invés, e apesar de aparentemente ir no bom sentido ao propor a revogação do banco de horas individual, propõe também a criação de um banco de horas referendário, cuja instituição depende da aprovação de apenas 65% dos trabalhadores, através de um processo inteiramente dominado pelo empregador, sem qualquer intervenção das estruturas representativas dos trabalhadores, e que poderá determinar a prestação de mais 150 horas anuais de trabalho gratuito.

Neste processo, como em todos os demais conducentes ao estabelecimento de regimes de flexibilidade do tempo de trabalho, as necessidades e responsabilidades familiares dos trabalhadores nunca são consideradas nem atendidas.

Na realidade, as formas de organização do trabalho estabelecidas na lei, designadamente os regimes de adaptabilidade e de bancos de horas, genericamente estabelecidos à revelia da vontade dos trabalhadores, e que determinam um prolongamento generalizado e uma constante irregularidade dos horários e tempos de trabalho são claramente incompatíveis com a necessidade de conciliar diariamente a vida profissional com a vida familiar, contrariando directamente o comando constitucional que manda atender, na organização do trabalho, à facilitação da conciliação entre vida profissional e vida familiar.

Acresce que o direito à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação entre a actividade profissional e a vida familiar pode considerar-se ainda como uma exigência do direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26º da CRP) e do direito à família (artigo 36º CRP), sendo por isso de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, e portanto não podendo ser restringidos, limitados ou condicionados sem obediência ao disposto no artigo 18º da Constituição».

 

 

 

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