“Inesperadamente, nos fins do ano de 1917 (Novembro) a minha curiosidade foi despertada pelo noticiário dos jornais sobre um grande acontecimento ocorrido na Rússsia que alertou profundamente todo o Mundo, principalmente as potências que se encontravam em guerra desde o mês de Agosto de 1914.
Na Rússia dos czares rebentara a Revolução Social!
Nesse tempo eu já gostava de ler e, para melhor acompanhar a evolução do grande acontecimento, passei a comprar o jornal diariamente o que era um luxo para um pobre soldado raso.
Ainda que só por instinto o meu espírito sempre estivera em boas condições de receptividade para a compreensaõ dos princípios sociais ligados à vida dos trabalhadores, mas sendo a minha consciencia de classe, nessa época uma nebulosa que ainda não me permitia discernir com clareza as diversas correntes ideológicas que actuavam na Revolução Russa, eu via-me embaraçado para adoptar aquela que melhor se ajustasse ao meu estado de consciencia social, ainda em formação.
Até ao levantamento popular russo eu só tomara contacto com pequenas lutas sociais que apenas superficialmente tinham espevitado o meu subconsciente.Nada se dera ainda que me fizesse despertar definitivamente para uma vida militante ao serviço de uma ideia que a minha consciencia instintivamente, há muito vinha reclamando.
Foi a vitória do Povo Russo que me arrancou ao primário estado social em que estava, a despeito de anos antes ter já ouvido as discussões dos companheiros de trabalho Silva e Lucas depois o velho libertário Serafim Lucena, na Associação dos Fabricantes de Calçado e de, finalmente, ter assistido a um comício anarquista de protesto contra os preparativos de guerra que o Governo estava fazendo a favor da França e da Grã-Bretanha que teve lugar nos terrenos da Praça da Alegria onde mais tarde funcionou a belíssima Escola Infantil, extinta depois pelo Estado Corporativo.Só a Revolução Russa,pois,teve o poder de acelerar o processo de formação da minha consciencia de classe até aí adormecida.
Um quadro militante de uma ideia político-filosófica não se faz dum jacto.Muitos anos têm de decorrer antes que o futuro militante se plasme nos acontecimentos, na causa ou na ideia que o fez despertar para uma vida de que não se apercebera antes.
Depois, o militante de uma ideologia política ou religiosa tem que pautar a sua linha de conduta particular e social pela ética dos princípios que abraçou, tendo para tanto de revestir-se duma personalidade que seja a expressão do seu carácter, da sua moral e da sua cultura já que sem um mínimo de cultura será sempre um militante obscuro sem prestígio e sem qualquer projecção sobre as massas humanas que ambiciona orientar e conduzir.
Terá que cometer muitos erros, desvios tácticos, revelará debilidades ideológicas mas, se for honesto, ir-se-á corriigindo à medida que o treino da luta lhe aumente os conhecimentos doutrinários e, só então, através da experiencia adquirida, verificará que um quadro político ou sindical leva muito tempo a fazer-se.
É por não se terem preparado devidamente que a maior parte dos militantes operários surgida entre nõs depois da Revolução Russa, com poucas excepções, desapareceram no dilúvio de 1926.
Mas os acontecimentos russos passaram a prender de tal modo as atenções do mundo que superavam a notícia da própria guerra que nessa altura se encontrava numa das suas fases mais violentas.
E quando a 7 de Novembro do ano seguinte passou o primeiro aniversário da revolução socviética já eu tinha abraçado definitivamente os princípios políticos e filosóficos que constituíam as vigas mestras desse grande acontecimento histórico que iria decidir dos destinos do Mundo.
Não sendo ainda um quadro político acabado, contudo, sem presunção, considerava-me já em regular estado de adiantamento.Pelo menos se não sabia ainda definir em linguagem doutrinária os princípios sociais que abraçara ao menos sentia-os profundamente.Aliás nesse mesmo ano um novo acontecimento me havia de empurrar definitivamente para as fileiras dos que se mantinham em rebelião permanente contra um mundo que assentava os seus fundamentos na exploração da classe operária, na guerra como fim de escravização de povos e na ignorância das massas populares, como a melhor forma de as poder oprimir impunemente.
José Silva, Memórias de um Operário, vol.I, Porto 1971