Por uma economia social e solidária-democrática e comunitária

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 Este texto  faz parte do  trabalho de Mestrado em Educação e Intervenção Social no âmbito do Mestrado em Educação e Intervenção Social da Escola Superior de Educação do Porto assinado por José Ricardo, Coordenador do Centro Social de Soutelo,Gondomar, uma das Associações de Solidariedade Social mais inovadoras da Região.

O próprio José Ricardo  explica a génese mais profunda destas reflexões:«no Centro Social estamos num processo de investigação-ação, participado por muitos trabalhadores e dirigentes, que procura avaliar o percurso de dez anos (2009/2018), iniciado com o projeto SIQ (Sistemas de Informação de Qualidade, 2008/2009 , orientado pela Universidade do Minho) em que foram definidas a missão, as políticas e os objetivos estratégico.

O «ZÉ Ricardo», como é conhecido pelos amigos, tem ainda uma larga experiência política, inclusive partidária, associativa e sindical, pertencendo também à Comissão para os Assuntos do Trabalho do Trabalho da BASE-FUT.

 

A democracia “direta” só é possível em comunidades pequenas, nas quais todos os membros do grupo possam reunir-se no mesmo lugar”. (Guiddens, 1972: p.259)

Em Portugal, vivemos um tempo de clarificação do que é e será o Terceiro Setor. A Lei de Bases da Economia Social, Lei nº 30/2013 de 8 de Maio, pretende instituir uma Confederação da Economia Social que congregue todas as instituições deste Terceiro Setor, formado pelas OSFL (Organizações Sem Fins Lucrativos)
A Conta Satélite da Economia Social (CSES), apresentada pela Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES) regista na economia social 61.268 unidades, distribuídas por Associações mutualistas (111), Cooperativas (2.117), Fundações (578), Misericórdias (389), Subsetores autogestionário e comunitário (877) e Associações com fins altruísticos (57.196). Com o estatuto de IPSS foram consideradas 5.584 unidades, maioritariamente Associações Com Fins Altruísticos (84,7%). A economia social representa 2,8% do Valor Acrescentado Bruto nacional (VAB), mas gera 5,2% do emprego total. Relativamente ao VAB das IPSS, na sua componente de acção e segurança social, ele representa 77,1%.
A Lei de Bases da Economia Social deve merecer uma análise crítica. A nosso ver, e que se confirma na própria lei, institui-se o abandono do princípio de “Sem Fins Lucrativos”. Como é referido no artº. 5º alínea g) “A afetação dos excedentes à prossecução dos fins das entidades da economia social de acordo com o interesse geral, sem prejuízo do respeito pela especificidade da distribuição dos excedentes, própria da natureza e do substrato de cada entidade da economia social, constitucionalmente consagrada.”

 

Primazia das pessoas sobre o lucro

Esta legislação, que não será “ingénua” permite que as empresas lucrativas que prestam serviços sociais e de saúde acedam aos fundos comunitários para a Economia Social e abre o caminho para a Economia Social se aproximar da economia de mercado, em que as pessoas com necessidades de cuidados serão tratadas de acordo com a sua conta bancária, para poder aumentar o lucro das instituições. Esta tendência deve ser contrariada pelas entidades da ESS para garantir a autonomia e especificidade do setor e com uma fronteira clara sobre a primazia das pessoas sobre o lucro, mantendo a exigência dos excedentes reverterem para os fins sociais das entidades. É a avidez do lucro que introduz a perversidade na Economia Social e a desvia o foco principal que é e deverá manter-se, uma economia de pessoas e para as pessoas.
Este caminho da sustentabilidade e rentabilidade iria diminuir o papel de coesão social que as instituições garantem ao empregar pessoas com mais incapacidade de aceder às empresas lucrativas, que são muito selectivas nas contratações. Para garantir a sustentabilidade das entidades da economia social e apoiar a sua função de coesão social é necessário um programa legal que permita as autarquias contratarem com as entidades da economia social, para a prestação de serviços de proximidade, sem necessidade de concurso público.
O que se deve exigir é a instituição de um direito comunitário, afirmando a natureza social das instituições e consagrando o princípio que a geração de excedentes é, obrigatoriamente, utilizada na prossecução dos seus fins sociais. Durkheim “concebe a socialização da produção como um meio que permitirá eliminar condições de trabalho (alienação tecnológica) que, subordinando o homem à produção económica, o “desumanizam”. Giddens, 1972: p. 323)
Esse direito comunitário, consolida o desenvolvimento da ESS, cria uma cultura democrática que desvanece os “resquícios do Estado Novo” (Santos, 2003) e contraria a propaganda da comunicação social, publica e publicada, que tende a considerar como subsidiodependência, as comparticipações do Estado dos acordos de cooperação com as IPSS. Esta mistificação, que pretende acabar com direitos sociais, sob a capa da sustentabilidade, eficiência de gestão, empresealização, mercado social e outros conceitos, ditos modernos, pode estar uma estratégia de isomorfismo de classe, diminuindo o caracter comunitário e de bem público das IPSS, transformando-as em empresas prestadoras de serviços. “A sociedade moderna deve aperceber-se do tipo fundamental de organização que tem de superar e de ultrapassar para criar um sistema social que não se baseie na exploração e da dominação do homem pelo homem”. (Morin, 1984: p.104)
A verdade é que os subsídios do Estado, para garantir direitos sociais, não são suficientes e é a “sociedade providência”, com base na família alargada e redes de entre ajuda, que compensa a fraqueza do Estado-Providência, na retaguarda de apoio quer aos filhos, quer no apoio aos mais idosos e dependentes. “Em 1981, quando o sistema oferecia uma muito precária protecção no desemprego, 71% dos desempregados declararam que a família era a sua principal fonte de rendimento e de subsistência.” (Santos, 2003:p. 190) As famílias têm que comparticipar para as despesas das entidades da economia social, porque as comparticipações públicas não são suficientes, através do princípio da diferenciação positiva.
A Economia Social e Solidária pode ser a economia do “dom” mais preocupada com as pessoas do que com o lucro e que se tem mantido nas margens da sociedade, apesar do domínio da sociedade capitalista.
“Seja como for, o potlatch (Mauss) parece que se mantém ali como um sinal de outra economia. Sobreviveu dentro da nossa, mas na periferia ou em seus interstícios… a perda que era voluntária em uma economia do “dom” se transforma em transgressão na economia do lucro. Aparece aí como excesso (desperdício), contestação (a rejeição do lucro) ou delito (atentado contra a propriedade).( Certeau, 1990: p. 89)

Esta economia não pode ser construída à custa dos seus próprios trabalhadores

Mas esta economia do “dom” não pode ser construída à custa da exploração dos seus trabalhadores. A naturalização do desígnio de solidariedade não pode ser fator de dominação dos próprios trabalhadores sociais, com os mais baixos salários, comparativamente a outros sectores da sociedade. Aos trabalhadores sociais não lhes pode ser exigido um espírito de missão e de solidariedade que neutralize a revolta pela situação de desigualdade com outras profissões. A solidariedade é vocacionada para os mais desfavorecidos e dependentes e não para ser subserviente da classe média que recorre aos serviços. Como não podem ser usados os instrumentos de luta, como em outras actividades económicas e prestadoras de serviços, como a greve, sobretudo em serviços de apoio a pessoas em isolamento social, devem ser encontradas outras formas de afirmação colectiva.
Uma agenda de progresso para a Economia Social passará necessariamente pelo aprofundamento de quatro pilares fundamentais: a democracia dos seus órgãos, a alocação dos excedentes aos fins sociais, a autonomia e cooperação com o Estado, a participação dos trabalhadores na gestão.
É fundamental a democratização dos órgãos sociais, não sendo suficiente a reforma do Dec Lei 172A de 14/11/ 2014 que estabeleceu algumas tímidas restrições, não chegando sequer ao nível das que são exigidas aos poderes autárquicos. E não basta a limitação de mandatos. É necessário que a própria entidade seja uma organização democrática com órgãos eleitos e com o direito de qualquer cidadão se poder associar.
A democracia das instituições ainda é uma democracia restrita, não apenas na sua constituição e representação directiva como também e, sobretudo, em relação à participação na gestão dos seus trabalhadores. O referido DL já permite a eleição de associados trabalhadores para a direção da instituição, mas o que se propõe é uma relação dialética entre a direção de voluntários eleita pelos associados com uma participação na gestão de trabalhadores nomeados para essa função, que prestam contas à direção eleita. Este foi o modelo de gestão concebido no âmbito do projeto SIQ e que está em avaliação.
É necessário que as entidades da ESS concebam uma estratégia construtiva e negociada na estruturação subsequente à Lei de Bases da Economia Social, transformando em valor social o enorme potencial de pequenas associações locais com equipamentos subaproveitados.
Assim, deve encontrar-se uma estratégia em rede, de aliança entre as pequenas associações culturais e recreativas e as entidades da economia solidária. Existe um potencial de crescimento e reforço dos direitos sociais das populações, conjugando o conhecimento e experiência das equipas técnicas. Estas equipas podem ser o motor de criação de redes locais, que integrem e dinamizem as associações mais pequenas, puxando também pelas instituições para a sua maior abertura à comunidade local.
É um processo de capacitação do local em que as organizações do Terceiro Setor assumem um papel central. E para participarem na promoção do desenvolvimento têm que optar pela metodologia participativa, com as populações como sujeitos e não objectos e “ cooperarem ativa e produtivamente entre si e com as entidades do setor público e do setor privado – praticar o trabalho em rede.” (Diogo & Guerra, 2013)
O compromisso com a comunidade local, independentemente da instituição ser de génese religiosa ou laica, é a estratégia a seguir para esta nova agenda de Economia social e Solidária. Participar no desenvolvimento local e na Animação Comunitária.
Este compromisso das entidades da ESS é possível porque, afastado o medo do comunismo, as instituições da ESS ligadas às Igrejas, que são a maioria, tenderão a ser uma oposição às políticas neoliberais, que não respeitam a dignidade humana.

[1] Conta Satélite da Economia Social – 2013 – CASES – disponível em http://www.cases.pt/wp-content/uploads/2016/12/Destaque_Conta_Satelite_da_Economia_Social.pdf

Bibliografia
Certeau, Michel de (1990). A Invenção do Cotidiano- Artes de fazer. Petrópolis. Editora Vozes, Ldª
Diogo, Vera & Guerra, Paula. (2013) A inovação social como utopia renovada: o caso da Associação Humanitária Habitat. Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Vol. XXV, pág. 141-163
Giddens, Anthony (1972). Capitalismo e Moderna Teoria Social. Lisboa: Editorial Presença.
Morin, Edgar (1984). Sociologia . Lisboa. Publicações Europa-América, Ldª
Santos, Boaventura & Ferreira, Sílvia (2003) in Pedro Hespanha e Graça Carapinheiro (org.) – Risco social e incerteza: pode o Estado social recuar mais? Porto: Afrontamento.

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