«O que se designa por banco de horas acrescentou um problema aos problemas gerados por outras formas de flexibilidade da gestão do tempo de trabalho. Para além da carga horária excessiva de trabalho que a legislação permitiu desde o seu início (em Portugal desde 2009), esta não é paga como trabalho extraordinário, o que representa de facto a sua desvalorização. No plano prático e simbólico, o que isso significa é que o esforço adicional do trabalhador para ‘além do seu tempo’, o tempo contratado, é negligenciado».-diz Maria da Paz Campos Lima, socióloga e investigadora na resposta que deu à nossa segunda pergunta e que publicamos agora:
2ª.A questão dos horários de trabalho, nomeadamente bancos de horas, não deveria estar sujeita à negociação coletiva sectorial e de empresa?
M.P.C.L-Segundo as estimativas mais recentes (Eurofound), os trabalhadores a tempo inteiro em Portugal trabalham mais horas do que a média europeia, atingindo em 2016, um dos valores mais elevados, isto é 41,1 horas semanais, o quinto valor mais alto entre 29 países, contando estados-membros e Noruega. E que ultrapassa em mais de hora e meia o valor médio negociado em sede de contratação coletiva (39,4 horas semanais) um valor acima no valor médio negociado. O que sugere duas coisas: a dificuldade da negociação coletiva em reduzir a duração semanal do trabalho e a dificuldade da negociação coletiva regular efetivamente as práticas de gestão do tempo de trabalho.
No geral, a regulação de todas as modalidades de gestão do tempo de trabalho deveria ser alvo de negociação setorial e sempre que possível de empresa, sem esquecer, no entanto, que a negociação de empresa não deve servir para reduzir direitos definidos no âmbito setorial.
Mas o papel da legislação é crucial na fixação dos limites máximos e restrições no que se refere a diferentes às diferentes formas de gestão do tempo de trabalho e flexibilidade horária sejam o trabalho por turnos, a adaptabilidade, a isenção de horários, os horários concentrados ou o banco de horas. A legislação é crucial porque deve assegurar e promover práticas de gestão do tempo de trabalho que não comprometam as condições da saúde e o bem-estar dos trabalhadores e que não comprometam a conciliação entre a vida pessoal e familiar e a vida profissional – que não podem ficar à mercê das lógicas de mercado, das características dos sectores e das empresas e das capacidades de negociação coletiva e de diálogo social a nível sectorial ou de empresa.
O que se designa por banco de horas acrescentou um problema aos problemas gerados por outras formas de flexibilidade da gestão do tempo de trabalho. Para além da carga horária excessiva de trabalho que a legislação permitiu desde o seu início (em Portugal desde 2009), esta não é paga como trabalho extraordinário, o que representa de facto a sua desvalorização. No plano prático e simbólico, o que isso significa é que o esforço adicional do trabalhador para ‘além do seu tempo’, o tempo contratado, é negligenciado.
O Código de Trabalho de 2009 (na sua versão original) assumia que o regime do banco de horas (no quadro dos limites fixados por lei) era matéria por excelência da negociação coletiva. Isto não só significava que a lei não podia ser aplicada por decisão unilateral patronal, como significava que as formas de implementação previstas, incluindo o banco de horas grupal tinham que ser instituídas por convenção coletiva. A legislação de 2009 assumia o papel-chave dos sindicatos na regulação de uma dimensão central das relações de emprego – o tempo de trabalho.
Ao mesmo tempo, o regime instituído em 2009 permitiu e permite condicionar fortemente a negociação coletiva em torno do banco de horas. Em primeiro lugar, pela grande amplitude de horas trabalho de adicionais que o quadro legal permite instituir, o que pode ser usado para legitimar exigências patronais em sede de negociação coletiva quanto aos máximos de trabalho diário, semanal e anual. Depois, porque os mecanismos de pressão, criados com a possibilidade de ‘caducidade unilateral’ das convenções coletivas, vieram condicionar fortemente os sindicatos no sentido de aceitar em vários setores o banco de horas com poucas ou nenhumas contrapartidas em vários setores. A implementação do banco de horas foi sendo também um dos motivos fortes implícitos ou explícitos da iniciativa patronal visando a caducidade das convenções coletivas.
Apesar destas limitações, a exigência legal de 2009 obrigando à instituição do banco de horas por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho não permitiu a sua generalização à totalidade dos setores e empresas, uma vez que o campo sindical não foi unânime quanto aos ‘méritos’ e ‘bondade’ desta modalidade de gestão do tempo de trabalho. A introdução do banco de horas individual, em 2012, pelo governo PSD/CDS visou contornar o problema patronal criando um regime dito de negociação individual entre empregador e trabalhador mas de facto de prerrogativa patronal, à margem e contra a negociação coletiva. Este regime constituiu uma rutura com o primado da regulação do tempo de trabalho pela negociação coletiva e promoveu a sua desregulação.
No programa de governo do PS o problema foi identificado e a eliminação do banco de horas individual suscitou o consenso na negociação parlamentar à esquerda, constando na agenda política desde 2015. A eliminação da medida consta também do acordo de concertação social de Junho de 2018 e dos projetos aprovados na generalidade na AR a 18 de Julho. Os principais argumentos para a supressão desta medida relacionam-se com o combate à individualização das relações de trabalho e aos seus efeitos na vulnerabilização dos trabalhadores, na erosão da negociação coletiva e no enfraquecimento dos sindicatos.
Alguma resistência patronal à eliminação da medida foi aparentemente neutralizada com uma outra medida inscrita no acordo de concertação social de Junho de 2018 que introduz uma ‘inovação’, repescando em parte a filosofia do banco de horas grupal mas distinta deste regime no sentido em que não obriga à sua instituição por convenção coletiva. Esta inovação que consta do artigo 208.º-B do projeto de lei do governo define que ‘O regime de banco de horas pode ainda ser instituído ao conjunto dos trabalhadores de uma equipa, secção ou unidade económica desde que aprovado em referendo pelos trabalhadores a abranger (…). Caso em que o período normal de trabalho pode ser aumentado até duas horas diárias e pode atingir 50 horas semanais, tendo o acréscimo por limite 150 horas por ano. Deste modo a contrapartida pela eliminação do banco de horas individual à margem da negociação coletiva é um novo banco e horas grupal à margem da negociação coletiva.
Curiosamente, a ideia de referendo patronal nas empresas permitindo decisões à margem da negociação coletiva não é uma invenção portuguesa. As portarias (ordinances) Macron trouxeram-na para o sistema de relações laborais em França, aí com implicações muito graves em vários domínios, em que se contorna a negociação coletiva e a própria lei, situação que levou a CGT a falar na emergência de ‘códigos de trabalho de empresa’.
Em Portugal a aceitação patronal da ideia de referendos nas empresas para instituir os bancos de horas dá bem a dimensão da perceção sobre a relação de forças nas empresas e na expectativa associada. Quando se pode ameaçar com a deslocalização e a redução do emprego (sendo mais fácil despedir) e quando uma parte significativa dos trabalhadores é precária, ou quando nas micro e pequenas empresas as relações laborais oscilam muitas vezes entre o autoritarismo e o paternalismo – ficam poucas dúvidas quanto às virtudes ‘democráticas’ de tais referendos. Para os trabalhadores os riscos são tanto maiores quanto menor é a presença sindical nas empresas, ou melhor dizendo quanto mais frágil é a organização coletiva dos trabalhadores. O papel dos sindicatos ficaria reduzido ao papel de meros vigilantes dos referendos, a correr de empresa a empresa.
Esta medida foi uma das propostas que justificou a critica da CGTP ao acordo de concertação social e é uma das propostas do projeto legislativo do governo do PS à qual se opõem o BE, o PCP e o PEV.
É importante relembrar neste contexto que em Portugal, segundo a última European Company Survey da Eurofound apenas 8% das empresas com mais de 10 trabalhadores tem estruturas representativas de trabalhadores de qualquer tipo. Há, sem dúvida necessidade de melhorar substancialmente esta situação. Mas se se quer estimular a organização coletiva dos trabalhadores e a sua mobilização para criação de estruturas representativas e forte presença sindical nas empresas, então talvez a redução do tempo de trabalho e não a sua extensão (por vias sinuosas) constitua o principal desafio politico e sindical. Vai ser um caminho difícil, como prova a recusa do PS em reverter medidas do tempo da Troika, como os cortes nos dias de férias, no descanso compensatório, no acréscimo remuneratório devido por trabalho suplementar, mas vai ser um caminho vital para a organização dos trabalhadores e para as bandeiras sindicais na negociação coletiva e de luta pela valorização do trabalho.